quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Aluga-se solidão

Ela me olhou nos olhos como uma cadela apaixonada. Apaixonada, mas abandonada numa sarjeta e então implorou: escreve uma poesia pra mim!

Esbocei uma resposta negativa e impaciente, mas respirei fundo e como sempre, achei melhor mentir do que ser mal educado. Enfiei a mão nos bolsos, a fim de parecer que estava procurando qualquer coisa. Senti a textura de algumas pratas, um pedaço de papel e um maço de cigarros. Embora o volume dos meus bolsos indicassem o contrário, respondi a garota com convicção: Não tenho nada aqui, me desculpe.

Ela olhou nos meus olhos de novo, dessa vez com um olhar ainda mais verdadeiro, em resposta a minha mentira tão indiscreta. Obrigada, que Deus te ilumine mesmo assim, ela disse com uma voz meio presa, mas que fazia sua esperança transbordar por soluços: um dia ela ainda seria amada.

Me sensibilizei com aquela baboseira por alguns dois minutos. Mas logo lembrei que ainda tinha contas para pagar naquele mês e cigarros para fumar. E segui em frente, caminhando apressadamente por aquela rua com cheiro de abandono.

Fui parado outra vez.

Ele me olhou como um amigo de infância que eu não via há muito tempo e implorou:

-Ô doutor, me arranja um real ae pra comprar cachaça.

-O quê?

-Me arranja um trocado pra mim comprar leite pras criança.

-Ah sim, claro. Tome aqui. Mande um beijo pras crianças!

Ganhei um abraço indesejado. O homem cheirava mal e havia me pegado de surpresa. Mas aquele foi o único e melhor abraço que havia ganhado no dia.

E assim, me sentindo abraçado e fedido, consegui virar a rua no fim daquela noite, tomando o caminho de volta pra casa. Também tomei um banho para me livrar do cheiro do pai das crianças. Me incomodava dormir sozinho, mas pelo menos dormiria de banho tomado e com a sensação de dever cumprido.

4 comentários:

  1. "...Que minha solidão me sirva de companhia.
    que eu tenha a coragem de me enfrentar.
    que eu saiba ficar com o nada
    e mesmo assim me sentir
    como se estivesse plena de tudo..."
    Clarice Lispector

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  2. Vamos participar do concurso de poesias da UFSJ. Abraço!

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  3. Maço de cigarro? Acreditaria mais se fosse seu game-boy.

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  4. solidão euma coisa tão recorrente que eu ainda não entendo como as pessoas ainda afirmam que é impossivel viver sozinho!

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