Em qualquer um desses próximos dez dias completarei dois meses de sobrevivência nessa cidade que tanto se parece comigo. Lá em casa, lá na minha cidade, ainda tentam encontrar algum motivo que possa justificar minha mudança. Foi uma mudança a trabalho, segundo minha mãe. Para meu pai, foi alguma mulher que encontrei. Para minhas tias, ainda não me livrei das drogas e acabaria morrendo de AIDS qualquer dia desses se não encontrasse Jesus. Meus amigos, se é que posso chamá-los assim, ainda nem perceberam que me mudei. No fundo agradeço a todos por ainda me colocarem na categoria das pessoas que precisam de motivos para sobreviver.
Só espero que um dia todos entendam que as pessoas mudam. Mesmo as pessoas que não acreditam em mudanças, acabam mudando.
Aqui tenho um trabalho fixo: o de trabalhar com qualquer coisa. Ainda não descobri muito bem pra que sirvo naquela “empresa” que fica naquela rua que ainda não sei o nome. Comecei como motorista de uma caminhonete velha, mas logo me rebaixaram de cargo por não conhecer nenhum lugar da cidade e passar mais tempo pedindo informações do que dirigindo e entregando aquelas caixas de biscoito. Duvido muito que realmente contenham biscoitos naquelas caixas. Falta preocupação com vigilância sanitária naquele lugar, onde sobram ratos, mofo e fortes cheiros de produtos químicos pouco usuais. A preocupação com a polícia é resolvida quinzenalmente, quando aparecem um tenente e dois sargentos para buscarem um malote pra lá de suspeito. Enfim, isso não deve ser do interesse de um cara que atualmente foi rebaixado a empilhador de caixas. Empilhadores de caixas devem se preocupar com caixas, bebidas e gostosas.
Todos os dias após largar o serviço por volta de oito da noite, passo no hotel meia-estrela onde me abrigo às vezes, guardo meu uniforme carinhosamente no chão, pego um casaco qualquer e parto para o bar do Mauro, onde me abrigo sempre.
No caminho entre o hotel e o bar, há muitas gostosas. Muitas, muitas mesmo. Partem de algum lugar desconhecido e vão para algum lugar que eu não sei. Mas elas sempre estão cruzando o meu caminho, andando, sendo observadas e sendo gostosas. Às vezes sinto que observá-las será minha única alegria do dia, então paro na esquina e como um bad boy apoio um dos meus pés na parede, acendo um cigarro e faço cara de estar esperando alguém ou ninguém. Quando tenho sorte, noto alguma reação de uma dessas garotas gostosas e menores de idade que adoram bad boys. Lançam-me olhares baratos e sedutores, os quais nunca consigo responder à altura. Então cai a minha máscara e a minha jaqueta de couro e a minha postura e os meus cigarros de bad boy. Decido recolher-me a minha insignificância de empilhador de caixas, abaixo o olhar e sigo logo para o bar, um lugar de fracassados como eu.
No bar, vivo me perguntando pra onde vão tantas gostosas. Chego a perguntar para o restante dos fracassados qual seria o destino delas. A maioria responde que vão para eles mesmos. Inventam inúmeras mentiras a fim de me fazer acreditar que andam comendo caviar na marmita. O Moacir, por exemplo, ontem mesmo jurou ter comido uma gostosinha de 17 anos. E diz isso como se não tivesse passado o dia inteiro no bar, onde acabou dormindo debaixo de uma mesa, graças à desatenção do Mauro. Finjo que acredito, embora minha expressão não demonstre nenhum sinal de convencimento, o que faz os fracassados insistirem com as mesmas histórias ou outras ainda mais miraculosas em alguns minutos.
Um dia pensei em perguntar sobre as gostosas pro Fernando, um cara com cerca de trinta anos que parecia ser o menos fracassado freqüentador do bar. Talvez eu até acreditaria se o Fernando contasse um desses contos de fadas masculinos contados pelos fracassados. Ele era um cara com bom papo, estudado, aparentemente da classe média e parecia estar passando apenas por um momento ruim, devido a uma briga com seu pai, que te deu de presente o seu antigo carro, ao invés de comprar um zero quilômetro. Certo dia, após muitas biritas na cabeça, acabei admitindo que o Fernando tinha lá seu charme, o que me gerou vários problemas no bar. Então era bom evitar conversas diretas com ele, em nome da minha reputação.
Um dia pensei em perguntar a Marcinha, a única das gostosas que conhecia. Ou melhor, a única das gostosas que eu conhecia o nome. Marcinha já estava pra lá da casa dos trinta anos, o que já lhe dava atributo de veterana entre as gostosas mais novinhas. Marcinha andava sempre com três amigas, duas dessas loiras de farmácia que já deviam ter sido contempladas com a felicidade de arranjar um velho rico, mas decidiram abandonar tudo e voltar para a pobreza em nome do seu amor maior: transar com qualquer cara. Também nunca me esqueço daquela ruiva, que pelo contrário das loiras, parecia ter no cabelo o seu único atributo original de fábrica. Sempre me perguntava se aquelas gostosas novinhas sobreviveriam ao tempo como Marcinha e suas amigas, mas todas pareciam não se preocupar muito com o tempo, todas eram efêmeras. Tirando as quatro gostosas acima dos 30, todas as gostosas pareciam brotar do nada e acabar indo para lugar nenhum e nunca mais cruzavam o caminho entre o hotel e o bar. Tudo isso só aumentava minha suspeita sobre o destino das gostosas: elas deviam encontrar homens ricos, bonitos, inteligentes ou qualquer atributo que os diferenciem bem de mim e assim mudavam com eles pra qualquer cidade/estado/país, por qualquer motivo ou porque as pessoas mudam.
Um dia perguntei pra Marcinha. Ela assustou e perguntou como eu sabia o nome dela. Não soube responder e disse que não interessava. Então ela disse que também não interessava saber pra onde as gostosas vão. Insisti perguntando porque ela e suas amigas sempre estavam lá, ao invés de simplesmente sumirem do mundo como as outras gostosas. Ela retrucou dizendo que não me interessava e ainda me mandou tomar no cu. Fiquei calado por instantes, tentando achar mais alguma dúvida que me intrigasse. Não achei. Levei um tapa no rosto daquelas mãos lindas, macias e perfumadas de Marcinha, que depois virou de costas e saiu andando como uma mulher pra lá dos trinta que continua gostosa como uma de dezessete. Aproveitei pra olhar sua traseira, tudo ainda estava em cima. Aproveitei também pra dizer que se ela continuasse assim sem sumir pra nenhum lugar com qualquer homem rico/bonito/inteligente/diferente de mim, ela poderia me procurar. Mas só se continuasse gostosa, porque as pessoas mudam. Mesmo sem querer, acabam mudando. Sempre mudam.
As pessoas mudam, mas a obra continua. E continua boa pra caralho.
ResponderExcluirParabéns!