domingo, 31 de maio de 2015

Apartar

        Naquele dia abri a porta, saí de casa e dei de cara comigo mesmo. Comigo embalado. Pacote pardo todo meio assim, fechado, lacrado, devidamente selado, identificado, carimbado, assinado, protocolado e escrito bem grande de um lado FRÁGIL e no outro DEVOLVER AO REMETENTE. O susto foi grande. Bom mineiro, guarneci-me em desconfianças e analisei o pacote minuciosamente. Cheirei, e era meu cheiro. Ouvi, e eram meus ruídos. Sacudi, e era meu sacolejo. Abri, e me era eu. Assustadamente me vi dentro daquele pacote. Aparentemente, lá estava eu, íntegro, com os mesmos defeitos e marcas de fábrica que há tantos anos me caracterizavam até mesmo a olho nu. Aparentemente devolvido em mesmo estado. Mas algo me dizia o contrário. Algo além dos meus sentidos, além do cheirar, ouvir, sacolejar e contemplar, me dizia o contrário. Faltavam partes que não sabia o nome. Partes que não sabia se poderiam ser substantivadas.

Boa parte de mim não voltou. Embora o esforço louvável de me embalar assim, com tanto cuidado e me devolver assim, na porta de casa, faltava algo em mim.
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Achei melhor entrar comigo. Não era recomendável me deixar ali abandonado na porta de casa sujeito à chuva, ao frio, ao calor, à vida, ao mundo. Meu coração cristão enrustido não me deixaria fazer isso – amar ao próximo como a ti mesmo. Com toda minha pouca força que me é peculiar, me arrastei por alguns minutos até entrar comigo. Fracos ou não, nos carregar nessa situação é pesado demais.

Me deixei ali mesmo na sala de estar. Tentei procrastinar o problema, apesar de não me caber debaixo do tapete. Tranquei a porta de casa e saí. Tentei levar o dia normal, fingir que nada havia acontecido. Mas aquilo não tinha nada de normal. Como assim me receber de volta? Achei melhor voltar e me encarar.

Me olhei e eu ainda estava ali do jeito que havia me deixado. Ainda me faltavam as partes que não sabia o nome. Era difícil me ver assim nesse estado de semissobrevivência e semi-integridade. Estavam ali meus cabelos, olhos, boca, tronco, membros. Estavam ali, mas eu não me estava por inteiro. Me encarei por um bom tempo e cada vez mais me perdia  em indagações comigo mesmo.

O desespero era evidente, questão de tempo. E me tomei em desespero. Fiquei com medo de não resistir tão exposto ao mundo e suas condições e temperaturas normais. Resolvi me guardar no freezer. Era necessário gelo. Era necessário me caber naquele freezer. Lá ganharia tempo. Lá estaria conservado e seguro até resolver o que fazer comigo.

Não me caberia no gelo sem me destroçar. Peguei o cutelo e sem dó de mim enfiei bem forte logo no peito. Me abri, me destrocei por inteiro, separei lado de cá e lado de lá. Procurei desesperadamente por aquilo que me faltava e não conhecia o nome. Me destrocei cada vez mais. Descobria partes em mim que não conhecia e as estraçalhava em seguida. Não eram o que eu procurava. Todas partes insignificantes. Apenas apêndices. Não me serviriam, estavam ali apenas para ser estraçalhadas. O que procurava, o que me faltava e não tinha nome, não encontrei. Não encontrei. Não sabia o que encontrar.  

Quando me caí em mim, apenas me vi ali em meio a tantos pedaços que eu mesmo fragmentei. Destroço particular. Parte ocular: me olhei mais uma vez e chorei. E como chorei.

Chorando percebi que não eram as lágrimas que me faltavam. E também por isso chorei.
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Inconfidência de mim
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Ainda não sei o que me falta, mas cansei de me guardar em gelo. Entre a salvação e o castigo, distribuí partes de mim por aí.

Vez ou outra dizem que viram não sei que parte de mim não sei com quem não sei em que lugar. Acredito que muitas vezes nem acredito. Entre a lenda e a história, que me sirva de exemplo para mim. Não me quereria mártir, falsamente imaculado, embalsamado, congelado - falso todo do que já não pode ser mais inteiro. Fiz a minha parte com esta parte que aqui estou: escrevi.

sábado, 4 de abril de 2015

Mais ao léu

         Já não incomodava tanto ouvir a pergunta que mais ouvia durante esses últimos tempos. “Está tudo bem?”. “De certa forma, sim” respondia João Carlos. De certa forma significava Abreu. Abreu do edifício ao lado, do Residencial Mutarelli, morador do 402, o quase vizinho de janela de J. Carlos.
        Para João C. era mais fácil passar os dias respondendo sobre sua saúde e se esconder. Sozinho, como sempre, em seu apartamento, passou muito tempo escondido, dividindo espaço com os frascos de xampu e condicionador entre um basculante do banheiro observando a vida de Abreu acontecer. Dali o Abreu não o enxergaria nunca, ele se garantia há tempos. Observava tudo. Acompanhou religiosamente o término do casamento do quase vizinho. Às 19h15 de segunda a sexta começavam os bate-bocas que se esquentaram cada vez mais até a explosão final. Era domingo de Páscoa e se fez muito barulho. Louças, plásticos, madeiras, vidros, porcelanas, sentimentos. Tudo sendo jogado pelos ares em uma dança frenética e João Carlos fechando os olhos em elevadíssimo estado de graça tentando descobrir apenas pelo barulho o que Abreu estava recebendo em sua direção. Separaram-se. Abreu passou a ser sozinho, assim como J. Carlos do basculante indiscreto.
      Carlos observou diariamente a solidão de Abreu se solidificar. Se achava superior nesse mundo. Era tão sozinho há tanto tempo que se achava mais forte e preparado que Abreu para habitar o vazio. Essa era “a parte ruim de ter companhia!”, se dizia João C. a todo instante enquanto demonstrava às paredes seu irônico sorriso amarelo amargo.
        Fumante assumido e praticante se descobriu com câncer bucal, assim, do nada, como ele diria ou assim, inevitavelmente, como diriam os médicos. Lhe doía a boca, lhe doíam as palavras que pouco pronunciava, lhe doía Abreu apenas sozinho e sem a ingrata companhia do câncer.
      Não se doeu assim por tanto tempo. Em uma de suas várias idas ao Hospital do Câncer, encontrou Abreu cabisbaixo em uma sala de espera. J. Carlos não sabia como agir. Pouco havia visto Abreu assim, na sua frente. Apesar de abatido, Abreu fez a boa-vizinhança. Se abriu para João Carlos como o câncer abria os dois por dentro. Contou detalhes da doença, dos sintomas, das dificuldades, do divórcio com a ex-mulher. Disse até que provavelmente não teria tempo de vida restante para ver o Vasco campeão outra vez. Carlos começou a sentir um tesão incontrolável por dentro. Uma sensação de leveza tomava seu corpo. O tumor de sua mediocridade de espírito lhe parecia benigno. Sorriu. Sorriu amarelo amargo. Gargalhou de tossir um fio de sangue. Abreu se assustou. Como poderia alguém rir tanto de tamanha desgraça com outra pessoa? João C. se deu conta de que não estava apenas entre as paredes mofadas de seu apartamento. Pediu desculpas ao quase vizinho. Disse que câncer na boca é assim mesmo. Às vezes dá isso. Sabe como é, né? A boca fica foda. Não dá pra segurar. É câncer. Não tão grave igual o seu, no cérebro, mas é foda, Abreu. Não dá pra segurar. Não é tão grave igual o seu. Não é tão grave igual o seu.
          Já não incomodava ouvir a pergunta que mais ouvia durante esses últimos tempos. Observava ainda mais freneticamente a vida do quase-vizinho. Quando não encontrava Abreu no Hospital, observava-o do seu velho basculante. Abreu ficou careca em uma velocidade absurda. Perdeu muito dos poucos quilos que tinha. Definhava-se em casa cada dia mais. Do outro lado, J. Carlos ria sem nenhum pudor tudo o que segurava no Hospital. Misturava sangue com cigarro, sadismo com dor. E gol do Flamengo. Vasco mais uma vez vice-campeão do Campeonato Carioca.
        Já se alegrava de ouvir a pergunta que mais ouvia durante esses últimos tempos. Dizia que estava bem, que poderia ter sido pior. Que câncer no cérebro é muito pior. “O Abreu que morava ao prédio ao lado está com câncer no cérebro sabia?”, não se cansava de dizer às velhinhas da igreja que o abordavam na rua com olhar de piedade. “Sim, ele está sim. Não está nada bem. Direcionem suas orações para aquela pobre alma...”.
Nem com todas as orações de todas as velhinhas do mundo Abreu se salvaria. E não se salvou. João Carlos acompanhou seus últimos dias no hospital apostando em sua mente em qual dia Abreu iria desencarnar. Errou por dois dias.
           E por um dia inteiro ficou velando o corpo de Abreu. Dizia que a família do morto não se preocupasse, de que para ele não seria problema nenhum passar a madrugada ali velando o corpo. Às vezes simulava uma ida ao banheiro, às vezes simulava ir tomar um café, às vezes simulava um ataque de choro. Precisava sair por certos momentos para dar conta de sua crise de riso. Abafava o som de sua gargalhada com um lenço imundo de sangue e catarro.

        Durante o enterro, só conseguia pensar em uma vaga de um mausoléu vazio quase ao lado dos restos mortais de Abreu. Simulou mais um crise de choro e foi ao coveiro perguntar como fazia para reservar a vaga, se resolvia essas coisas ali com ele mesmo. Voltou no outro dia, já com os papeis assinados, serviços funerários pagos, uma gorjeta sincera ao coveiro. E voltou em definitivo, mais um dia depois. Caixão bonito, de madeira boa, pra combinar com o mausoléu. Os poucos que foram no velório, no enterro, simulavam ataques de choro para se encontrar e se perguntar: “será que câncer na boca dá isso mesmo de o morto parecer que morreu sorrindo?”.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

37370

Carlos, que roupa é essa Carlos? Que roupa perfeita é essa?

-Não é roupa, senhor. É uma proteção contra o vírus Ebola...

Aposto que é coisa do Fagundes. Desgraçado. Isso é coisa do PDM. Sempre saindo na frente. Já pensou eu com uma roupa dessas, Carlos? Pra que merda mesmo eu pago vocês, ein? Tirei o incompetente do Ronaldo do PDM pra isso? Você mesmo me incentivou a tirar ele de lá, Carlos. Disse que em 2010 o PDM só ganhou por causa de marketing. Mandou eu investir e tirar o Ronaldo de lá e trazer pra cá. Aí eu vou, tiro esse viado de lá e o que ele faz? Porra nenhuma! Enquanto isso o Fagundes tá com essa roupa podendo abraçar todo mundo e ganhando um monte de votos. É disso que eu preciso, Carlos! Poder dar uns apertos de mão sem me preocupar, dar uns abraços, beijar umas criancinhas... Preciso de popularidade, caralho! Subir nas pesquisas, intenções de voto. Falta pouco tempo pra eleição, merda!

-Não, senhor... esse não é o Fagundes e...

Que merda, cara! Esse Ronaldo só pode tá me traindo. Como deixa uma ideia dessas pra concorrência? Um monte de empresário já me pressionando, dizendo que não vão bancar mais uma derrota... Minha mulher toda preocupada, meus filhos chorando... Tá todo mundo pirando, cara. Minha mãe tá rezando, fazendo novena na Matriz pra ver se eu ganho dessa vez...

-Senhor, por favor, me escute. Não é nada disso que você está pensando. Essa não é uma roupa comum, é uma proteção que os americanos estão utilizando para o tratamento do vírus Ebola...

É isso mesmo, Carlos! É isso mesmo! Tá aí na minha agenda, pode ver. Você pelo menos anda com a minha agenda, seu incompetente? Deve tá no site. O Ronaldo coloca tudo no site. Acho que é isso mesmo, Carlos. Morro do Ebola, semana que vem. Imagina eu com uma roupa dessas, com uns adesivos colados... Meu número: 37370 bem grande colado no peito Embaixo a frase: “Honestidade e Prosperidade”... Até que ia ficar legal, né Carlos? Grande frase, gostei bastante. Pelo menos pra isso o Ronaldo serviu. “Honestidade e Prosperidade”...

-Senhor, os americanos...

Isso Carlos! Bem lembrado! O Ronaldo fala inglês, né? Põe ele em contato com esses americanos agora. Quero essa roupa pra semana que vem! Morro do Ebola, aí vou eu!

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Paulatinamente

Não era “me fazer o bem” que ele queria. Não era mesmo. Paulo sempre foi assim e só estava ali para torturar cachorro morto; me fazer sentir menor do que as bactérias que me comiam por dentro. Santa Majestade Paulo, sempre ele, Paulo, Paulista de São Paulo, sempre mais inteligente, mais equilibrado, mais forte e mais perto de Deus, ainda que quem flertasse com a morte fosse eu. Mas ele estava lá, mal consegui abrir os olhos e ele já estava lá. Antes que eu reconhecesse a fria parede branco-hospital e a cama de metal com o lençol verde que me reclinaria conforme eu quisesse mas não me daria asas para escapar de Paulo. Antes de uma enfermeira com pressa, antes de uma refeição sem gosto (ou com gosto de minha relação com Paulo), antes de me dar conta dos tubos que enchiam de soro pelas veias, me enchi pelas veias da alma de ódio do sorriso de Paulo. Aquele sorriso cheio de dentes brancos que parecia ser mais uma peça de roupa dos trajes obrigatórios da falsa clareza de tudo daquele hospital.

A minha boca, ainda com gosto de sangue, não consegui abrir. Cuspo aqui, agora, o que não consegui naquele dia. Cuspo o sangue já não tão fresco: coalhado de um rancor que bisturi nenhum tiraria. Fui só ouvidos, ódio e ouvidos. Prorroguei involuntariamente uma relação que há muito me acabava e que há pouco eu resolvi acabar. A cada gota de soro que me reidratava, Paulo me tirava duas. Senti certa alegria estranha por conseguir acordar e não estar em coma, apesar que ainda me faltavam certezas sobre meu verdadeiro estado e por quanto tempo estive “dormindo”. O alívio de ser um ser acordado, não mais uma planta estática apenas a ouvir a voz de Paulo. Passei muito tempo assim em estado normal de temperatura e pressão e não queria agregar assim, de bandeja e de cama, mais uma felicidade ao Perfeito Mundo de Paulo.

A sua voz irritava meu corpo por inteiro, mas meus ouvidos faziam a desonra de suportá-la. Seu sotaque paulistano, dizendo que não mais me abandonaria fazia de meus ouvidos paladar; senti o gosto de suas palavras vomitadas. Ouvi, inerte naquela cama, seu dizeres de “Eu te perdoo e nunca mais vou te abandonar”. Minha boca, condenada ao sangue, embora não fosse capaz de falar, serviu ao menos para despertar o nojo que Paulo sentia e de mim e assim me fazer escapar de mais um beijo daquele verme que por tanto tempo me comeu. Ganhei um demorado beijo no rosto com falso afeto e um demorado beijo na testa com um falso “se cuida”.

“Me cuidar” era a última coisa que Paulo gostaria que eu fizesse. Meu jeito desajeitado e desesperado ao dar meu último show foi o que ele mais gostou. Senti que ali meu tiro tinha saído pela culatra, Paulo se alimentou ainda mais de seu narcisismo disfarçado de amor por mim. Ele agora estava ali, para cuidar de mim, para me sufocar, para cuidar de mim, para me dominar, para cuidar de mim, para fazer de mim seu maldito fantoche.

A cada passo de minha morte, dois passos de vida para Paulo. O que começou em igualdade, no zero, no nível do mar, se tornou uma eterna corrida de cada um por si. Eu enxergava a linha de chegada, meu fim, minha libertação: a morte. Paulo, sempre mais ambicioso, se cegava ao subir minhas montanhas e sempre enxergar o além: haveria limites para sua embriaguez de vida e de narcisismo?


A verdade é que Paulo havia roubado meu eu. O meu eu e de tantas outras pessoas que passaram por sua vida. E eu só queria ter passado. Passado desta vida: pra outra, ou pra nenhuma. E assim fracassei. E assim o gosto de sangue me calou na cama do hospital. E assim o gosto da morte foi removido de meu estômago. E assim essa cicatriz na minha barriga me mostra como os médicos foram como Paulo: mais eficientes em me limpar e saber o que era melhor para mim. E aqui, nessas linhas, tento morrer mais uma vez. Morrer aqui, onde Paulo não saberá do velório.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Dois de Fevereiro

-Não me venha com essa, Neide. Sabe muito bem que deve ter sim algo em especial nesse menino. Onde já se viu nascer no dia do aniversário do pai? É muito orgulho. Me enche de orgulho esse muleque. Dentro de tantos dias do ano, 365 não é Neide? Dentro de tantos dias e ele escolhe justamente o meu pra nascer. E depois você ainda não quer que ele seja meu preferido?

-Seu imbecil! Você não pode ter isso de filho preferido! Fica aí mimando o Ricardinho e ele tá crescendo um idiota completo e ainda vai conseguir a façanha, Alberto, vai conseguir a façanha de ser um homem mais idiota do que você. Você, Alberto, você que é um idiota completo e todo mundo sabe, mas ó: eu vou me separar mesmo de você, não é de hoje que falo isso, vou me separar mesmo e você vai ver! Agora filho não, Alberto. Filho é pra sempre. Não quero que o Ricardinho seja imbecil igual a você e case com uma mulher boa que vai sofrer igual eu. E o pior é que mulher assim arranja, Alberto, arranja porque você me arranjou. Eu era tão jovem, bonita, cheia de vida e ainda me casei com você... e não tem isso de escolher o dia pra nascer, seu imbecil! É a última vez que te falo e eu vou me separar de você logo, vou sim, eu vou...

-Ah tá? Agora a culpa é só minha? Isso, isso. Clap, clap, clap. “Vamos botar a culpa no Alberto”. “Vamos botar TODA A CULPA nele”. Desde MILNOVECENTOSESETENTAEUM Alberto Augusto Ferreira levando a culpa de tudo. É impressionante, Neide. O Ricardinho faz de tudo por um pouco de atenção e você sempre ignorando o pobre do seu próprio filho. Não foi no futebol semana passada pra ir na casa da sua mãe com você. Não foi no cinema com a Patrícia porque eu tive que te dar dinheiro pra comprar suas coisas não sei onde. Ele tentando esquecer a Bianca e nem pode ir no cinema com outra. E sem contar que, você sabe, largou a Bianca POR SUA CAUSA e até hoje sofre por ela. Onde já se viu, Neide? Não te pesa a consciência? Largou aquela bonitinha da Bia por causa de você que ficava cismando que ela parecia com a Cláudia... E você nunca vai entender isso, não é, Neide? Agora o coitado do Ricardinho perdeu um mulherão daquele, linda, linda. Olhos verdes, loirinha, educada, de família, o bairro todo queria. E ele consegue pegar ela e ficar com ela e gostar dela e tudo com ela, você sabe que ele fez tudo. Mas nem tudo é suficiente, não é? Agora ele vai ser obrigado a acabar casando com outra que não gosta. E larga de bobeira, Neide. Sabe que isso não tem nada a ver com a Cláudia. Foi só um lance de juventude nada mais. Passou, passou. Eu nem penso mais nela e no que seria se tivesse ficado com ela. Bonita ela tá sim, Neide, bonita ela tá. Tá conservada? Tá, é verdade. Mas vai falar que agora a culpa é minha? Bonita ela sempre foi e se ela se conserva é bom sinal, não é? Sinal que tá bem de saúde. Deveria servir de exemplo, eu não tenho culpa, tenho? E você sabe que nem era pro Ricardinho nascer dia dois. Ele mesmo se adiantou para nascer no dia do pai. Ou você não lembra disso, Neide? A própria mãe não lembra do dia do nascimento do filho. Típico seu, Neide. Você que todo ano faz tanta festa e tanto fuê pro aniversário do Tiago e da Laís. Mas pro filho do meio, sobra alguma coisa? Nada... e ainda reclama dele ser meu preferido.

-De novo a vaca da Cláudia, Alberto? De novo? E o respeito? Não tem mais mesmo? Acabou o pouco que tinha? Então vai lá, garanhão. Vai lá e fica com ela. Vamos ver se ela vai te querer. Aquela vaca velha gorda enrugada cheia de maquiagem com plástica mal feita piranha baranga mal vestida. Vai lá então, já que acha ela tão bonita e vamos ver então se ela vai te querer. Você todo barrigudo aí fica se achando jovem. “Nossa, olha que velho maneiro, gente... ele usa as roupas do filho de dezenove anos”. Ridículo, Alberto, ridículo. Fica aí usando as roupas do Ricardinho e achando que tá jovem. Cria tipo de gente, velho ridículo. Tanta roupa boa de homem sério e fica aí usando camisetinha de marca dando uma de jovem. E faço sim a festa que quiser no aniversário do Tiago e da Laís. Tenho que fazer festa porque você não dá um presente bom pros dois, é só Ricardo, Ricardo, Ricardo. Ricardinho no céu. Óh, Santo Ricardinho...

-Eu uso a roupa que eu quiser, viu Neide? Uso mesmo porque fica bom em mim e além do mais, foi com o dinheiro de quem que ele comprou? Com meu dinheiro. Aliás, uso só umas duas ou três camisetas, as outras duas foi ELE que me deu de aniversário. O Tiago e a Laís não, só servem pra me dar chinelo e lenço de aniversário. Tá certo, eu gosto, gosto deles. Reconheço o esforço deles pra me agradar e essas coisas, mas com o Ricardinho é diferente. Ele me entende. O único dessa casa que me entende e sabe do que eu gosto. Vai dizer que não tem uma ligação? E você aí, toda enciumada é porque sabe que eu estou novo e essas roupas ficam boas em mim e você não pode usar roupa nenhuma da Laís porque engordou e envelheceu. Fica, fica com os dois. Dois filhos só pra você e eu só quero um. Do que ainda reclama? Eu nunca fui o filho preferido do meu pai e me dei bem na vida!

-Se deu bem na vida, Alberto? Em que vida? Porque se for na vida de marido e de pai, sinto te dizer mas você é um fracasso!

Alberto não respondeu mais. Suspirou fundo. Foi até a geladeira e pegou uma cerveja. Virou no corredor e foi rumo ao quarto de Ricardinho. Ouviu Neide gritar: Ai dela se ela visse o marido dando um gole de cerveja pra um filho dela debaixo do seu próprio teto. Alberto também não respondeu. Também não achou Ricardinho no quarto. Apenas a bagunça de seu quarto. Em cima da cama, uma camiseta amassada. Pegou, amassou, sentiu o cem por cento de algodão. Se perguntava se essa era a daquela marca que Ricardinho tanto pediu para ele no mês anterior. Não, não era. Acabou se lembrando do dia que Ricardinho saiu com Bianca. Ele estava com essa camiseta da gola bonita. Camiseta cheirosa. Alberto cheirou a camiseta. Que cheiro bom. Era de Ricardinho? Era de Bianca? Por que não podia ser de Alberto?

Tirou sua camiseta velha e de velho. E com ela enxugou suas lágrimas, enxugou seu suor. Vestiu a camiseta de Ricardinho. Se olhou no espelho. Ficou bem. Ficava bem com aquela camiseta, com aquele cheiro. Aquele cheiro haveria de ser dele. Murchou a barriga, endireitou sua coluna. Colocou a mão dentro do bolso da camiseta. Achou um papel amassado. Bianca: Rua Rio de Janeiro, 455.

Pegou o carro. Não respondeu Neide dizendo aonde ia.

Neide se preocupou. Será que voltaria tarde? Será que daria tempo de ligar para o Lucas, amigo do Ricardinho? Era melhor não arriscar. Amanhã Alberto iria pro trabalho. Era melhor não arriscar. Mas Neide estava se sentindo tão sexy com a calcinha da Laís...

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

É tempo de rolezinho

É tempo de rolezinho.

E o nosso já vai começar.

Não vamos para shoppings grandes reivindicar a nossa presença.

Porque aqui não há grandes shoppings.

E se houvesse, e nós fossemos, também não seríamos expulsos.

Temos meia dúzia de roupas adequadas para o ambiente.

Moramos mal, às vezes no morro. Comemos mal, mas sobra dinheiro pra cerveja barata.

Sofremos com o aluguel. Mas não temos nenhum vizinho traficante.

Somos, na grande maioria, brancos.

Mas, se for o caso, nos declaramos negros e entramos pelas cotas.

Entraremos mesmo é no ônibus. São João del-Rei/Tiradentes. Vamos nos espremer e quem sabe arranjar um lugar pra sentar. 

Vamos todos, galera. Chamem todos. O pessoal da sala, o pessoal do curso, o pessoal da república.

Nos encontramos na rodoviária, ou talvez, na república para um esquenta.

A bebida é cara, vamos encher a cara aqui mesmo e já chegar no grau.

Podemos também levar na mochila uma bebida pra economizar e nos mantermos bêbados.

Vamos logo, se apresse. Já colocou sua melhor roupa? Aquela camisa xadrez  que você usou pra ir na balada sertaneja. Um cachecol, mesmo que no calor. A boina que roubou do seu avô. Arranja logo um óculos de aro grosso sem grau. No pescoço sua câmera semi-profissional. Camufle-se.

Vamos logo, se apresse. O ônibus já vai passar. Vamos chegar logo, ver dois ou três filmes, quem sabe uns curtas. Pode ter um complicado de entender. Só não vale admitir. Faça de conta que gostou, que entendeu, que já tinha ouvido falar. Diga o quanto estava ansioso para contemplar tal arte.

Perdeu o ônibus, amigo? Não deu tempo de chegar para os filmes? Não se preocupe. Ainda tem o último. E o último é o mais importante, não é? Ele te leva ao que interessa: O show.

It’s showtime! Encontrou amigos no show? Que legal! Vamos todos curtir juntos. Mas se alguém perguntar sobre os filmes, não se afobe. Comente o quanto achou interessante a sessão das nove. Solte frases genéricas de efeito: “Achei muito poético”. “Retrata bem a realidade”. Não quer se arriscar tanto? Solte um “Maaaassa” com um tom reflexivo.

No palco, alguma banda de MPB, Jazz, música pura e instrumental. Canções semi-conhecidas ou semi-desconhecidas que você, obviamente, vai dizer que ama. Não sabe a letra? Não se preocupe. Segure o copo de bebida junto ao corpo, olhe para o horizonte e balance na “vibe da música”.

Depois do show, tenha cuidado ao vagar pelas ruas de pedra. Capriche na fonética. Use um léxico que não é tão seu. Apesar da companhia de seus amigos da mesma cidade, você não vai querer, logo de cara, dar na cara que é nativo. Do interior de minas. Bom mesmo é se camuflar. Há cariocas, paulistas e sulistas por todo lugar. Se der sorte, ainda se encontra gringos. Franceses, americanos, italianos, gente do mundo inteiro. É a magia do cinema! Você vai querer estragar tudo por conta de seu sotaque?

Recebeu convites ao longo da cidade para uma balada depois do show? Diga que vai! Não vá transparecer assim que comprou cerveja no único, e mais copo sujo, bar da cidade. E com o troco ainda comprou um pastel de três reais. Vai dar na cara que não tem 30 ou 40 reais pra entrar na festa da cervejaria?

Não deu pra ir mesmo, não é? Não se preocupe, você pode procurar algum agito mais em conta. Será que tem movimento no chafariz? Não tem? Dê mais umas duas ou três voltas pela cidade. Sim, tem muitos morros e as ruas de pedra cansam mais e mais seus pés tão bem calçados pelo seu melhor calçado.

Cansou? Cansou mesmo? Não tem mais nada? Não tem mais nada mesmo? Corra logo então pra pegar o ônibus de volta!

E... Não tem mais ônibus! E agora? Como proceder? São duas e meia da manhã e você aí, sem ter como voltar. Vai lá na praça, quem sabe tem uma van? Não tem vans! Por que será? Olha o preço do táxi, quem sabe dá? Quem sabe seus amigos fazem uma vaquinha e vocês conseguem ir? Não deu mesmo né?

Volta na rodoviária. Confere lá se não tem mesmo mais nenhum ônibus. Não tem mesmo, né? Só as sete da manhã! Será que não tem nenhum, nenhunzinho conhecido de carro pra poder dar carona? Não tem mesmo, né? O jeito vai ser deitar na rodoviária e esperar. Bom que você descansa, né? O dia tão agitado e tudo que você quer agora é descansar. Descansar na sua casa seria o ideal. Mas e daí? Em Tiradentes você se sente em casa, não é?

E se alguém te ver deitado na rodoviária, também não há o que temer. Aproveite. É o festival de Cinema de Tiradentes. Dê uma de ator e improvise dizendo que seu amigo “bodou” e você só está ali para ajuda-lo. E se esse alguém for conhecido aproveite e já combine de voltar no dia seguinte.


Finalmente o ônibus chegou. Ufa! É hora de voltar pra república. Quem sabe ano que vem, juntando uma grana e com alguns meses de antecedência você não consegue fazer uma reserva numa pousada? Mas ainda há tempo. Depois você pensa nisso. Você está cansado e é melhor descansar. É melhor renovar as energias, pois amanhã começa tudo de novo.

domingo, 18 de agosto de 2013

Serendipidade

um poeta exilado
achou abrigo em mim
e ainda anda se manifestando
dizendo ao mundo
o aperto que passa aqui dentro

o poeta exilado
que achou abrigo em mim
não trouxe bandeira partidária
nem garantia monetária
mas não deixa de escrever à amada

descobriu
que quer mesmo é ajudar
com filantropia poética
quer curar doenças
alimentar a alma
educar os olhos
dar de brincar onde há criança

o poeta exilado
que achou abrigo em mim
parece falar outra língua
mas até entendo quando
diz que quer ficar
e não comprou passagem de volta

tem um poeta exilado
que achou abrigo em mim
e eu nem sei por qual fronteira ele passou
guarda nenhuma o persegue
nem há recompensa para qualquer informação
que leve a sua captura

um poeta exilado
achou abrigo em mim
e os americanos
aqueles putos
não enviam ajuda
aí fica difícil
matar dois de mim com um poema só.