Naquele dia abri a porta, saí de
casa e dei de cara comigo mesmo. Comigo embalado. Pacote pardo todo meio assim,
fechado, lacrado, devidamente selado, identificado, carimbado, assinado,
protocolado e escrito bem grande de um lado FRÁGIL e no outro DEVOLVER AO
REMETENTE. O susto foi grande. Bom mineiro, guarneci-me em desconfianças e
analisei o pacote minuciosamente. Cheirei, e era meu cheiro. Ouvi, e eram meus ruídos.
Sacudi, e era meu sacolejo. Abri, e me era eu. Assustadamente me vi dentro
daquele pacote. Aparentemente, lá estava eu, íntegro, com os mesmos defeitos e
marcas de fábrica que há tantos anos me caracterizavam até mesmo a olho nu.
Aparentemente devolvido em mesmo estado. Mas algo me dizia o contrário. Algo além
dos meus sentidos, além do cheirar, ouvir, sacolejar e contemplar, me dizia o
contrário. Faltavam partes que não sabia o nome. Partes que não sabia se
poderiam ser substantivadas.
Boa
parte de mim não voltou. Embora o esforço louvável de me embalar assim, com
tanto cuidado e me devolver assim, na porta de casa, faltava algo em mim.
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Achei
melhor entrar comigo. Não era recomendável me deixar ali abandonado na porta de
casa sujeito à chuva, ao frio, ao calor, à vida, ao mundo. Meu coração cristão enrustido
não me deixaria fazer isso – amar ao próximo como a ti mesmo. Com toda minha
pouca força que me é peculiar, me arrastei por alguns minutos até entrar comigo.
Fracos ou não, nos carregar nessa situação é pesado demais.
Me
deixei ali mesmo na sala de estar. Tentei procrastinar o problema, apesar de
não me caber debaixo do tapete. Tranquei a porta de casa e saí. Tentei levar o
dia normal, fingir que nada havia acontecido. Mas aquilo não tinha nada de
normal. Como assim me receber de volta? Achei melhor voltar e me encarar.
Me
olhei e eu ainda estava ali do jeito que havia me deixado. Ainda me faltavam as
partes que não sabia o nome. Era difícil me ver assim nesse estado de semissobrevivência
e semi-integridade. Estavam ali meus cabelos, olhos, boca, tronco, membros.
Estavam ali, mas eu não me estava por inteiro. Me encarei por um bom tempo e
cada vez mais me perdia em indagações
comigo mesmo.
O
desespero era evidente, questão de tempo. E me tomei em desespero. Fiquei com
medo de não resistir tão exposto ao mundo e suas condições e temperaturas
normais. Resolvi me guardar no freezer. Era necessário gelo. Era necessário me
caber naquele freezer. Lá ganharia tempo. Lá estaria conservado e seguro até
resolver o que fazer comigo.
Não
me caberia no gelo sem me destroçar. Peguei o cutelo e sem dó de mim enfiei bem
forte logo no peito. Me abri, me destrocei por inteiro, separei lado de cá e
lado de lá. Procurei desesperadamente por aquilo que me faltava e não conhecia
o nome. Me destrocei cada vez mais. Descobria partes em mim que não conhecia e
as estraçalhava em seguida. Não eram o que eu procurava. Todas partes insignificantes.
Apenas apêndices. Não me serviriam, estavam ali apenas para ser estraçalhadas.
O que procurava, o que me faltava e não tinha nome, não encontrei. Não
encontrei. Não sabia o que encontrar.
Quando
me caí em mim, apenas me vi ali em meio a tantos pedaços que eu mesmo
fragmentei. Destroço particular. Parte ocular: me olhei mais uma vez e chorei.
E como chorei.
Chorando
percebi que não eram as lágrimas que me faltavam. E também por isso chorei.
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Inconfidência
de mim
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Ainda
não sei o que me falta, mas cansei de me guardar em gelo. Entre a salvação e o
castigo, distribuí partes de mim por aí.
Vez
ou outra dizem que viram não sei que parte de mim não sei com quem não sei em
que lugar. Acredito que muitas vezes nem acredito. Entre a lenda e a história,
que me sirva de exemplo para mim. Não me quereria mártir, falsamente imaculado,
embalsamado, congelado - falso todo do que já não pode ser mais inteiro. Fiz a
minha parte com esta parte que aqui estou: escrevi.