quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

É tempo de rolezinho

É tempo de rolezinho.

E o nosso já vai começar.

Não vamos para shoppings grandes reivindicar a nossa presença.

Porque aqui não há grandes shoppings.

E se houvesse, e nós fossemos, também não seríamos expulsos.

Temos meia dúzia de roupas adequadas para o ambiente.

Moramos mal, às vezes no morro. Comemos mal, mas sobra dinheiro pra cerveja barata.

Sofremos com o aluguel. Mas não temos nenhum vizinho traficante.

Somos, na grande maioria, brancos.

Mas, se for o caso, nos declaramos negros e entramos pelas cotas.

Entraremos mesmo é no ônibus. São João del-Rei/Tiradentes. Vamos nos espremer e quem sabe arranjar um lugar pra sentar. 

Vamos todos, galera. Chamem todos. O pessoal da sala, o pessoal do curso, o pessoal da república.

Nos encontramos na rodoviária, ou talvez, na república para um esquenta.

A bebida é cara, vamos encher a cara aqui mesmo e já chegar no grau.

Podemos também levar na mochila uma bebida pra economizar e nos mantermos bêbados.

Vamos logo, se apresse. Já colocou sua melhor roupa? Aquela camisa xadrez  que você usou pra ir na balada sertaneja. Um cachecol, mesmo que no calor. A boina que roubou do seu avô. Arranja logo um óculos de aro grosso sem grau. No pescoço sua câmera semi-profissional. Camufle-se.

Vamos logo, se apresse. O ônibus já vai passar. Vamos chegar logo, ver dois ou três filmes, quem sabe uns curtas. Pode ter um complicado de entender. Só não vale admitir. Faça de conta que gostou, que entendeu, que já tinha ouvido falar. Diga o quanto estava ansioso para contemplar tal arte.

Perdeu o ônibus, amigo? Não deu tempo de chegar para os filmes? Não se preocupe. Ainda tem o último. E o último é o mais importante, não é? Ele te leva ao que interessa: O show.

It’s showtime! Encontrou amigos no show? Que legal! Vamos todos curtir juntos. Mas se alguém perguntar sobre os filmes, não se afobe. Comente o quanto achou interessante a sessão das nove. Solte frases genéricas de efeito: “Achei muito poético”. “Retrata bem a realidade”. Não quer se arriscar tanto? Solte um “Maaaassa” com um tom reflexivo.

No palco, alguma banda de MPB, Jazz, música pura e instrumental. Canções semi-conhecidas ou semi-desconhecidas que você, obviamente, vai dizer que ama. Não sabe a letra? Não se preocupe. Segure o copo de bebida junto ao corpo, olhe para o horizonte e balance na “vibe da música”.

Depois do show, tenha cuidado ao vagar pelas ruas de pedra. Capriche na fonética. Use um léxico que não é tão seu. Apesar da companhia de seus amigos da mesma cidade, você não vai querer, logo de cara, dar na cara que é nativo. Do interior de minas. Bom mesmo é se camuflar. Há cariocas, paulistas e sulistas por todo lugar. Se der sorte, ainda se encontra gringos. Franceses, americanos, italianos, gente do mundo inteiro. É a magia do cinema! Você vai querer estragar tudo por conta de seu sotaque?

Recebeu convites ao longo da cidade para uma balada depois do show? Diga que vai! Não vá transparecer assim que comprou cerveja no único, e mais copo sujo, bar da cidade. E com o troco ainda comprou um pastel de três reais. Vai dar na cara que não tem 30 ou 40 reais pra entrar na festa da cervejaria?

Não deu pra ir mesmo, não é? Não se preocupe, você pode procurar algum agito mais em conta. Será que tem movimento no chafariz? Não tem? Dê mais umas duas ou três voltas pela cidade. Sim, tem muitos morros e as ruas de pedra cansam mais e mais seus pés tão bem calçados pelo seu melhor calçado.

Cansou? Cansou mesmo? Não tem mais nada? Não tem mais nada mesmo? Corra logo então pra pegar o ônibus de volta!

E... Não tem mais ônibus! E agora? Como proceder? São duas e meia da manhã e você aí, sem ter como voltar. Vai lá na praça, quem sabe tem uma van? Não tem vans! Por que será? Olha o preço do táxi, quem sabe dá? Quem sabe seus amigos fazem uma vaquinha e vocês conseguem ir? Não deu mesmo né?

Volta na rodoviária. Confere lá se não tem mesmo mais nenhum ônibus. Não tem mesmo, né? Só as sete da manhã! Será que não tem nenhum, nenhunzinho conhecido de carro pra poder dar carona? Não tem mesmo, né? O jeito vai ser deitar na rodoviária e esperar. Bom que você descansa, né? O dia tão agitado e tudo que você quer agora é descansar. Descansar na sua casa seria o ideal. Mas e daí? Em Tiradentes você se sente em casa, não é?

E se alguém te ver deitado na rodoviária, também não há o que temer. Aproveite. É o festival de Cinema de Tiradentes. Dê uma de ator e improvise dizendo que seu amigo “bodou” e você só está ali para ajuda-lo. E se esse alguém for conhecido aproveite e já combine de voltar no dia seguinte.


Finalmente o ônibus chegou. Ufa! É hora de voltar pra república. Quem sabe ano que vem, juntando uma grana e com alguns meses de antecedência você não consegue fazer uma reserva numa pousada? Mas ainda há tempo. Depois você pensa nisso. Você está cansado e é melhor descansar. É melhor renovar as energias, pois amanhã começa tudo de novo.

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