segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Lux Lounge

Divinópolis parecia ter ficado hospitaleira demais depois que eu a abandonei. A cidade estável, com população média, qualidade de vida média e oportunidades médias despertava em mim uma saudade média e ambições de um morador de cidade pequena. Divinópolis parecia ter entrado no clima de “vou dar pro primeiro que aparecer” e o que seria bom há alguns tempos atrás, começava a me incomodar. Qualquer um era aceito em Divinópolis. De certa forma, isso era como um tapa na minha cara, que busquei a aceitação durante tantos anos sem conseguir.

Eu e Divinópolis éramos como ex-amantes forçados a manter um bom relacionamento devido a tantos segredos que escondíamos. Mas estava ficando difícil para mim. Não via a hora de ter meu próprio dinheiro e pagar logo uma bela pensão pra me livrar de todo esse inferno. A anarquia que se consolidava conseguia ser mais cansativa e sufocante do que esse cotidiano maluco destinado aos jovens das cidades médias.

A boiolagem, essa praga que havia chegado cedo demais para uma cidade média, estava lutando pelo poder divinopolitano. Isso estabelecia essa relação de “vale-tudo” nas ruas da minha cidade mais ou menos querida. O problema é que eu não achava problema nenhum nos “telecatchs” em que vivia. Nas ruas sempre havia um monte de gente muito bem arrumada indo para as igrejas, onde rezavam por suas almas pecadoras e pediam perdão por terem faltado da missa porque estavam assistindo novela. Eu não gostava de suas roupas chiques compradas a prestação, de suas igrejas com arquitetura mal planejada e de suas novelas sobre a vida nos bairros burgueses do Rio de Janeiro. Mas eu aturava as pessoas e era aturado, pois eu não era um caso perdido aos olhos de Jesus. Havia uma chance para mim. Em minha opinião, a chance era sair dessa cidade o mais rápido possível. Para o restante da cidade, uma simples ida na igreja nos domingos resolveria meu problema.

Mas para a boiolagem, não havia solução. Jesus Cristo não aceitava boiolas em seu lar. Jesus, muito esperto, tinha tratado logo de impedir que os boiolas se multiplicassem do modo convencional. No começo funcionou, mas os homens reinterpretaram as escrituras sagradas, criaram a televisão, o microondas e a internet, que mais tarde foram dominados pelos boioloas que aprenderam a utilizá-los como instrumentos para o mau. A boiolagem era um caminho sem volta e estava sendo difundida e seguida cegamente. Os boiolas estavam destinados a vagarem pelas ruas da cidade e o caos seria apenas questão de tempo. E todo bom divinopolitano sabe que não há muitas diferenças entre Divinópolis e o mundo. Se hoje Divinópolis se prostituía, amanhã seria o mundo...

Eu e a sociedade divinopolitana tentamos esquecer nossas diferenças e nos juntamos para combater o mau maior. A sociedade divinopolitana rezava, fazia promessas e fazia cara feia toda vez que aparecesse um boiola na novela das oito. Não adiantava. Eu tentava passar mais tempo nos bares, ouvia mais rock n roll no volume máximo e andava com uma camisa de futebol diferente todos os dias. Não adiantava.

Minha angústia não era opcional, mas era momentânea. Bastava eu voltar para Belo Horizonte e tentar esquecer o caos que era obrigado a contemplar durante os feriados e fins de semana. Mas eu não queria ter raízes numa terra de boiolas. Não queria ter histórias para contar com um plano de fundo manchado pela desordem e volúpia. Porém a situação se complicava cada vez mais. Enquanto eu vivia nos bairros sujos e distantes da minha cidade adotiva, Divinópolis iria se consolidando no ramo boiolístico e a notícia de cidade dos boiolas já ultrapassavam os limites estaduais. Mudei-me de cidade mais algumas vezes, cheguei até a sair do estado, mas não adiantou. Estava difícil esconder os segredos de Divinópolis.

Com o tempo e a primavera, vieram as paradas boiolas, as calças jeans coloridas de boiolas e a Primeira Igreja dos Boiolas do Reino de Deus. Era boiolagem demais.

Com o tempo, eu desisti. Não havia mais como voltar para Divinópolis. Não havia como limpar todas as merdas que os boiolas fizeram. Fui motivo de zombaria por todas as cidades que passei. A única solução foi tentar a vida no exterior.

Jesus havia me dado uma salvação. Na Europa, todos me entendiam. Sentiam minha angústia e contemplavam minha dor com uma empatia ímpar. Eu era compreendido nos botecos, nos cafés, no Facebook e nas teses acadêmicas. As vendas dos meus livros deslancharam como a boiolagem em Divinópolis.

Após longos e felizes anos na Europa, eu não sentia saudade de Divinópolis, do Brasil ou da minha juventude. Me sentia anestesiado e devidamente disfarçado com rugas, calvície e um ar de intelectual decadente. Fui convidado para passar uns dias em Belo Horizonte. Havia um convite muito bem remunerado para dar uma palestra em uma universidade. Após ter visitados diversos países, achei que o meu trauma já tivesse sido superado. Tive oportunidades de contemplar lugares piores do que o Brasil e com mais boiolas do que Divinópolis.

Na universidade conversei com alguns professores, que pareciam ter feito a lição de casa: puxaram muito meu saco e não se ousaram a comentar sobre meu lugar de origem. Logo após tomei um bom café mineiro antes de entrar no anfiteatro. Lembrei do café de minha avó. Lembrei de Divinópolis e das poucas coisas boas que existiam lá, como o café, a minha avó e meu cachorrinho que morreu de velhice (ou de tédio).

Ao entrar no anfiteatro, recebi uma apresentação sebosa, uma salva de palmas, uma jarra com água e uma cadeira confortável. Depois me deram um microfone. Comecei perguntando se haviam divinopolitanos presentes. Uns vinte levantaram a mão. Mandei todos à merda. Falei algumas verdades que me engasgavam há anos. Fui vaiado. Retruquei falando sobre o número das minhas vendas na Europa. Fui ainda mais vaiado. Algumas pessoas começaram a sair do recinto, outras começaram a rasgar meus livros. Outros arremessaram livros covardemente contra a velha casca de um escritor mal compreendido. Vi o ódio nos olhares de cada divinopolitano. Pareciam ogros possuídos por uma raiva instantânea que duraria a eternidade. Pareciam homens.

Fui impedido de continuar a palestra, saí vaiado e com uma escolta de seguranças. Já havia um carro da universidade me esperando. Para o aeroporto? Perguntou-me o motorista. Perguntei se já existiam vôos regulares para Divinópolis, ele respondeu que não. Paguei-o qualquer cinqüenta pratas para ficar de boca fechada e mandei-o correr para a rodoviária a tempo de pegar o próximo Teixeira.



Notas do Autor: Lux Lounge: Nova boate quase gay de Divinópolis.

Teixeira: Única empresa de ônibus que faz o trajeto Belo Horizonte - Divinópolis.

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