Na minha antiga rua da minha antiga cidade até que passavam
alguns carros, porque era praticamente caminho pro Centro. Ainda mais naquela
vez quando arrebentaram uns canos e uns esgotos na rua de cima, aí os carros
todos passavam de lá pra cá, desviando a rota cotidiana, indo e vindo tudo
apertadinho no meio das terras, e eu ficava me sentindo morador de cidade
grande no meio daquele montão de carros.
Ficava imaginando eu morando num apartamento, desses de
cidade, que eu pegaria elevador pra descer e ir à padaria às cinco da tarde e
no meio disso tudo cumprimentar o porteiro falando de futebol. Ficava também
entre o alívio e a dó, sabendo que já passei na idade de jogar bola na rua, mas
sentindo pena dos meninos que perderiam essas coisas fundamentais.
Já nas ruas lá de baixo, nunca passava carro nenhum. Nem carro,
nem menino jogando bola; mal mal passava o leiteiro. E é de uma rua de lá que
eu lembro duma história. Foi o caso do Seu Nelson, coitado. Foi num dia de
semana mesmo, só não lembro o qual. Mas o fato é que o Seu Nelson tava lá,
sentadinho na porta de casa proseando com um vizinho, falando sobre o que
falava há tempos: o quanto os tempos estavam mudados. E nisso aí, conversa vai,
conversa vem, carro não vai, carro não vem, veio no Seu Nelson uma vontade de
chamar o compadre, que morava doutro lado da rua pra prosear também.
Vruuuuuum!!!, Bbââââââââ!!!, Qrrrrrrrrr!!!
Segundo Seu Nelson, um estrondo parecido com desses filmes
americanos que falam inglês. Achou que ia morrer igual ator alto de olho azul.
Mas com efeitos especiais da vida real, se safou por um triz, por descapricho
do azar, por milagre de Nossa Senhora.
Mas foi mesmo um baita dum barulhão, carro vermelho em alta
velocidade, buzina cortante carregada por metros e metros, e uma freada brusca
lá na frente só pra não poder falar que o motorista não parou.
A rua inteira ouviu e todo mundo saiu de casa preocupado: ou
era o apocalipse ou era gente da cidade passando por ali, embora a maioria não
enxergasse muito a diferença das duas situações. O vizinho que conversava, se
acovardou, virou a cara, endureceu o corpo, fechou os olhos, tapou o ouvido,
engoliu seco, rezou pro santo.
Dona Jandira, esposa do Seu Nelson, saiu com pressa mesmo sem
saber o que tinha acontecido. E viu o pior: Seu Nelson, branco feito leite,
enrugado como maracujá e caído ali no chão que nem uma jaca espatifada. Dona
Jandira ali parada com a vasilha do angu nos braços e o Seu Nelson lá, parado,
escondido na poeira da rua que ele mesmo levantara.
Foi grito pra tudo que é lado. Grito, choro, xingamento,
reza, palavrão, angu. O motorista, que havia parado pra ver o que aconteceu,
achou melhor sair correndo, dessa vez ainda mais rápido do que quando atropelou
o Seu Nelson.
Quase que a rua inteira, sem saber o que fazer, só sabia
culpar, injustamente, a Dona Arminda, que tinha uns parentes “ricos” de São
Paulo que costumavam ir visitá-la de carro. Dona Arminda, em choque com o Seu
Nelson esticado e com a rua acusando o povo dela, se defendia: -Não foi ninguém
meu não, gente, como cês podem pensar uma coisa dessas? Nunca vi carro vermelho
na vida!
Enquanto isso, o pragmático, Armindo, foi socorrer Seu
Nelson. Perguntou umas coisas que o velho não conseguiu responder, mais pelo
susto do que por qualquer arranhão. Armindo, o pragmático, pegou Seu Nelson nos
braços e levou pra casa em frente, a do compadre. Deitou o velho lá na cama de
casal, onde ficou quase o dia inteiro.
A casa do compadre havia virado uma mistura de velório e
maternidade. Gente feliz pelo Seu Nelson não ter morrido, gente preocupada
achando que ela ainda podia morrer. Dona Jandira ficou lá na cadeira ao lado da
cama chorando sem parar. Em volta da imagem da santa, formava-se uma roda de
velhas a rezar fazendo ligação direta pros céus com terços nas mãos.
A comadre na cozinha, fazendo biscoito de polvilho e café
pras visitas que chegavam pra ver o acidentado. Os homens no corredor, falavam
sobre o que viram, sobre os barulhos que ouviram e sobre como matariam o motorista
se ele voltasse lá na rua. Armindo, pragmaticamente, fazia perguntas pro Seu
Nelson regularmente, pra ver se ele sentia isso, se sentia aquilo. Seu Nelson
falava que doía mais de susto do que de dor mesmo.
Como Armindo havia alertado, um dia depois Seu Nelson já
estava firme como o governo do Getúlio. Tudo resolvido. Hora das velhinhas
começarem a pagar as promessas e da Dona Jandira receber as visitas com a
receita de biscoito de polvilho da comadre. Hora dos homens escutarem como Seu
Nelson se livrou do carro feito agente secreto. Como o vizinho medroso havia
fechado os olhos na hora da cena, não havia sobrado testemunhas. Seu Nelson
sentia-se aliviado, livre para contar qualquer versão do acontecimento.
Seu Nelson morreu uns dois anos depois, por causa de uma
pneumonia. Passou esses uns dois anos contando a história do carro que o
atropelou, de como ele viu a cara da morte, etc. Num ponto foi até bom, porque
semana passada vi uma história que eu não aguentaria esconder dele.
Tava eu na cidade, no alto do prédio que moro, observando os
carros das seis da tarde. E num buzino seco, cortando que nem cachaça, veio um
carro desses vermelhos mais novos, e plaft. Atropelou alguém, que nem deu pra
ver se era velho igual Seu Nelson ou se era novo como eu. E o velho, ou o novo,
morreu. Morreu de verdade. Ficou lá esticado até os bombeiros irem buscar.
Ficou lá atrapalhando o trânsito. Todo mundo reclamou que ele ficou lá
atrapalhando o trânsito.
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