quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Vermelho como o céu


Na minha antiga rua da minha antiga cidade até que passavam alguns carros, porque era praticamente caminho pro Centro. Ainda mais naquela vez quando arrebentaram uns canos e uns esgotos na rua de cima, aí os carros todos passavam de lá pra cá, desviando a rota cotidiana, indo e vindo tudo apertadinho no meio das terras, e eu ficava me sentindo morador de cidade grande no meio daquele montão de carros.

Ficava imaginando eu morando num apartamento, desses de cidade, que eu pegaria elevador pra descer e ir à padaria às cinco da tarde e no meio disso tudo cumprimentar o porteiro falando de futebol. Ficava também entre o alívio e a dó, sabendo que já passei na idade de jogar bola na rua, mas sentindo pena dos meninos que perderiam essas coisas fundamentais.

Já nas ruas lá de baixo, nunca passava carro nenhum. Nem carro, nem menino jogando bola; mal mal passava o leiteiro. E é de uma rua de lá que eu lembro duma história. Foi o caso do Seu Nelson, coitado. Foi num dia de semana mesmo, só não lembro o qual. Mas o fato é que o Seu Nelson tava lá, sentadinho na porta de casa proseando com um vizinho, falando sobre o que falava há tempos: o quanto os tempos estavam mudados. E nisso aí, conversa vai, conversa vem, carro não vai, carro não vem, veio no Seu Nelson uma vontade de chamar o compadre, que morava doutro lado da rua pra prosear também.

Vruuuuuum!!!, Bbââââââââ!!!, Qrrrrrrrrr!!!

Segundo Seu Nelson, um estrondo parecido com desses filmes americanos que falam inglês. Achou que ia morrer igual ator alto de olho azul. Mas com efeitos especiais da vida real, se safou por um triz, por descapricho do azar, por milagre de Nossa Senhora.

Mas foi mesmo um baita dum barulhão, carro vermelho em alta velocidade, buzina cortante carregada por metros e metros, e uma freada brusca lá na frente só pra não poder falar que o motorista não parou.

A rua inteira ouviu e todo mundo saiu de casa preocupado: ou era o apocalipse ou era gente da cidade passando por ali, embora a maioria não enxergasse muito a diferença das duas situações. O vizinho que conversava, se acovardou, virou a cara, endureceu o corpo, fechou os olhos, tapou o ouvido, engoliu seco, rezou pro santo.

Dona Jandira, esposa do Seu Nelson, saiu com pressa mesmo sem saber o que tinha acontecido. E viu o pior: Seu Nelson, branco feito leite, enrugado como maracujá e caído ali no chão que nem uma jaca espatifada. Dona Jandira ali parada com a vasilha do angu nos braços e o Seu Nelson lá, parado, escondido na poeira da rua que ele mesmo levantara.

Foi grito pra tudo que é lado. Grito, choro, xingamento, reza, palavrão, angu. O motorista, que havia parado pra ver o que aconteceu, achou melhor sair correndo, dessa vez ainda mais rápido do que quando atropelou o Seu Nelson.

Quase que a rua inteira, sem saber o que fazer, só sabia culpar, injustamente, a Dona Arminda, que tinha uns parentes “ricos” de São Paulo que costumavam ir visitá-la de carro. Dona Arminda, em choque com o Seu Nelson esticado e com a rua acusando o povo dela, se defendia: -Não foi ninguém meu não, gente, como cês podem pensar uma coisa dessas? Nunca vi carro vermelho na vida!

Enquanto isso, o pragmático, Armindo, foi socorrer Seu Nelson. Perguntou umas coisas que o velho não conseguiu responder, mais pelo susto do que por qualquer arranhão. Armindo, o pragmático, pegou Seu Nelson nos braços e levou pra casa em frente, a do compadre. Deitou o velho lá na cama de casal, onde ficou quase o dia inteiro.

A casa do compadre havia virado uma mistura de velório e maternidade. Gente feliz pelo Seu Nelson não ter morrido, gente preocupada achando que ela ainda podia morrer. Dona Jandira ficou lá na cadeira ao lado da cama chorando sem parar. Em volta da imagem da santa, formava-se uma roda de velhas a rezar fazendo ligação direta pros céus com terços nas mãos.

A comadre na cozinha, fazendo biscoito de polvilho e café pras visitas que chegavam pra ver o acidentado. Os homens no corredor, falavam sobre o que viram, sobre os barulhos que ouviram e sobre como matariam o motorista se ele voltasse lá na rua. Armindo, pragmaticamente, fazia perguntas pro Seu Nelson regularmente, pra ver se ele sentia isso, se sentia aquilo. Seu Nelson falava que doía mais de susto do que de dor mesmo.

Como Armindo havia alertado, um dia depois Seu Nelson já estava firme como o governo do Getúlio. Tudo resolvido. Hora das velhinhas começarem a pagar as promessas e da Dona Jandira receber as visitas com a receita de biscoito de polvilho da comadre. Hora dos homens escutarem como Seu Nelson se livrou do carro feito agente secreto. Como o vizinho medroso havia fechado os olhos na hora da cena, não havia sobrado testemunhas. Seu Nelson sentia-se aliviado, livre para contar qualquer versão do acontecimento.

Seu Nelson morreu uns dois anos depois, por causa de uma pneumonia. Passou esses uns dois anos contando a história do carro que o atropelou, de como ele viu a cara da morte, etc. Num ponto foi até bom, porque semana passada vi uma história que eu não aguentaria esconder dele.

Tava eu na cidade, no alto do prédio que moro, observando os carros das seis da tarde. E num buzino seco, cortando que nem cachaça, veio um carro desses vermelhos mais novos, e plaft. Atropelou alguém, que nem deu pra ver se era velho igual Seu Nelson ou se era novo como eu. E o velho, ou o novo, morreu. Morreu de verdade. Ficou lá esticado até os bombeiros irem buscar. Ficou lá atrapalhando o trânsito. Todo mundo reclamou que ele ficou lá atrapalhando o trânsito. 

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