domingo, 28 de novembro de 2010

Notas sobre a (minha) felicidade

Há felicidade por todos os lugares. Nos parques, nas praças, nos lagos de carpas, nos livros que leio e no que eu pareço ser.

Mas a minha ainda não anda por aí. Por falsidade ideológica, ou por sempre saber onde pode me encontrar. A minha felicidade não sai comigo nas noites de sexta. Recusa meus telefonemas aos sábados e assim como eu, prefere não sair aos domingos.

Eu, que nunca fui tirano, tenho uma felicidade autônoma. Trabalha por si e prefere sair por aí sozinha ou má acompanhada. Então aproveita-se disso para se repartir. Enganando a si mesma como boa samaritana, tenta justificar seu compartilhamento infantil e egoísta. Faz a alegria de meia dúzia de pessoas após algumas doses de álcool. Então se aproveitam da minha felicidade. Por alguns poucos minutos e por quanto mais tempo a memória e o orgulho for capaz de sustentar. Mas ela foi feita pra mim, sobre medida. Os outros que arranjem as suas. Toda admiração alheia sobre a minha felicidade será superficial e efêmera.

Minha felicidade ainda me cumprimenta nas ruas. Faz questão de mostrar que ainda está lá. Cada centímetro e cada minuto longe dela me faz matéria-prima e refém de instintos animais demais ou humanos demais.
Procuro aceitar. Procuro não te procurar. Nenhuma felicidade é tão simples quanto na minha imaginação. Por que a minha haveria de ser?

Vá, minha felicidade. Dê suas voltas sem coleira. Tome cuidado com os estranhos. Leve seu casaco, o mundo lá fora pode ser frio. E não se esqueça que a porta dos fundos estará sempre aberta, caso você resolva voltar.

domingo, 7 de novembro de 2010

Por que o Roberto mora no Bonfim?

Roberto era um pacato morador de uma pequena cidade no interior de Minas. Quer dizer, São João era considerada pequena para maioria das pessoas, exceto por Roberto, que morava no alto do Bonfim e tinha um emprego no bairro das Fábricas. Roberto não entendia porque morava tão longe de seu trabalho. Conhecia mais gente nas Fábricas do que em qualquer outro lugar do mundo. Conhecia muito sobre todas as pessoas que trabalhavam com ele e muitas vezes desejava não conhecê-las tão intimamente. Conhecia tudo sobre o bairro, as fábricas, as padarias, os botecos, as mulheres que traíam seus maridos. Reconhecia de longe as velhas arquiteturas das casas onde seus companheiros de emprego moravam e o quanto eles gastavam menos por morarem perto do trabalho e pagar o aluguel de casas antigas.

Sobre o Bonfim, ele não sabia muita coisa. Sabia que o dono da casa velha onde ele morava, cobrava o preço do aluguel de uma casa recém-construída num bairro nobre. Uma vez Roberto passou o fim de semana numa cidade bem maior e ficou fascinado ao descobrir que as coisas funcionavam até mesmo dia de sábado. Até as imobiliárias funcionavam aos dias de sábado, então Roberto aproveitou para olhar o preço das casas equivalentes a que ele morava no alto do Bonfim. Descobriu então que pagava por uma garagem, dois quartos a mais (inclusive uma suíte), e um pequeno quintal para cachorro. Mas no Bonfim, não tinha nada disso. Talvez tivesse e Roberto não sabia, já que nunca havia entrado na casa de seus vizinhos.

O pacato morador do Bonfim morria de vontade de reclamar sobre o preço do aluguel que pagava. Sentia vontade de usar esse dinheiro e se mudar logo pro bairro das Fábricas e utilizar o que sobraria para conquistar alguma daquelas mulheres que traíam seus maridos. Pensava muito sobre isso aos sábados de manhã, já que nada na cidade funcionava naquela cidade. A tarde, procurava uma cópia do contrato de aluguel que o mantinha preso ali naquela terra de ninguém. Mas nunca achava o contrato, devido a bagunça de sua casa. Sua casa tinha dois quartos, um banheiro, uma cozinha e uma área minúscula que servia apenas para guardar algumas vassouras e uns rodos. Para um homem, sua bagunça era até conveniente, o problema era o quarto "vazio" onde ele guardava todas as suas coisas, desde as cópias do contrato até as necessidades fisiológicas do seu cachorro.

O problema poderia ser resolvido se Roberto pedisse outra cópia ao dono da casa. Mas Roberto não sabia onde ele morava e só o via uma vez por mês, quando ia lá cobrar o aluguel. Todo dia 5 do mês, o velho ia cobrar o aluguel. Ele tocava a campainha infinitas vezes e ficava esperando Roberto na porta. Seu cachorro ficava desesperado e latia como se estivesse no cio. Enquanto isso, Roberto fingia não estar na casa. Dez minutos depois, o velho desistia e ia embora. Assim, Roberto tinha mais uma semana para arranjar o dinheiro do aluguel. Todo dia12 ou 13, o sobrinho do velho aparecia lá para cobrar o aluguel mais uma vez. Com ele, Roberto não discutia, entregava logo o dinheiro no primeiro soar da campainha. O sobrinho do velho era forte e tinha uma cara de mau, além de uma fama que se estendia até o bairro das Fábricas.

Certo mês, Roberto se cansou daquela vida e resolveu pedir um adiantamento de salário e para sua supresa, seu pedido foi atendido. Ficou em dúvida se devia usá-lo para viajar mais uma vez pra cidade grande, se gastava tentanto conquistar uma mulher adúltera do bairro das Fábricas ou se guardava para pagar o aluguel no dia 5. Ele poderia até ter viajado pra cidade e então procurar por uma mulher adúltera da cidade grande, mas seu cachorro havia adoecido. Acabou gastando o dinheiro com veterinários, remédios e vacinas. Não adiantou nada e seu cachorro acabou morrendo alguns dias depois. Já era dia 5 e Roberto não tinha dinheiro para o aluguel mais uma vez. E o pobre do cachorro não estaria ali para latir como um louco quando o velho fosse cobrar o aluguel. Roberto, no fundo, sabia que sentiria falta disso.

O velho não apareceu no dia 5. Nem no dia 6, 7, 8... e nem o seu sobrinho apareceu nos dias 12 ou 13 para cobrar. Roberto achou tudo muito estranho, mas não achou ruim. Achou melhor guardar o dinheiro até o fim do mês, para não ser pego desprevinido. Acabou gastando o dinheiro outra vez e felizmente ninguém havia ido cobrar o aluguel.

Morando praticamente de graça, Roberto começou a olhar o Bonfim com novos olhos. Aos fins de tarde, sentava na praça onde conversava com os velhinhos, tentando descobrir informações sobre o velho do aluguel. Nenhum velho parecia conhecer ele, mas conheciam umas boas e velhas histórias sobre o Bonfim que faziam questão de contar. Na praça havia também um cachorro abandonado e muito simpático, e após alimentá-lo por alguns dias, Roberto resolveu levá-lo para ser seu novo companheiro de quarto.

Enquanto isso, no bairro das Fábricas, os homens eram só trabalho. As mulheres, só adultério. Roberto começava a achar isso entediante e não via a hora de voltar para o Bonfim para conversar com os velhinhos e alimentar seu cachorro.

Dois meses haviam se passado e ninguém cobrava o aluguel. Roberto já havia conseguido o dinheiro pro dia 5, já tinha dado um nome ao seu cachorro e havia, finalmente, achado a cópia do seu contrato de aluguel, que não fazia nenhuma oposição a sua mudança. Nada mais o prenderia ali se o bairro das Fábricas não tivesse ficado tão incoveniente.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Lux Lounge

Divinópolis parecia ter ficado hospitaleira demais depois que eu a abandonei. A cidade estável, com população média, qualidade de vida média e oportunidades médias despertava em mim uma saudade média e ambições de um morador de cidade pequena. Divinópolis parecia ter entrado no clima de “vou dar pro primeiro que aparecer” e o que seria bom há alguns tempos atrás, começava a me incomodar. Qualquer um era aceito em Divinópolis. De certa forma, isso era como um tapa na minha cara, que busquei a aceitação durante tantos anos sem conseguir.

Eu e Divinópolis éramos como ex-amantes forçados a manter um bom relacionamento devido a tantos segredos que escondíamos. Mas estava ficando difícil para mim. Não via a hora de ter meu próprio dinheiro e pagar logo uma bela pensão pra me livrar de todo esse inferno. A anarquia que se consolidava conseguia ser mais cansativa e sufocante do que esse cotidiano maluco destinado aos jovens das cidades médias.

A boiolagem, essa praga que havia chegado cedo demais para uma cidade média, estava lutando pelo poder divinopolitano. Isso estabelecia essa relação de “vale-tudo” nas ruas da minha cidade mais ou menos querida. O problema é que eu não achava problema nenhum nos “telecatchs” em que vivia. Nas ruas sempre havia um monte de gente muito bem arrumada indo para as igrejas, onde rezavam por suas almas pecadoras e pediam perdão por terem faltado da missa porque estavam assistindo novela. Eu não gostava de suas roupas chiques compradas a prestação, de suas igrejas com arquitetura mal planejada e de suas novelas sobre a vida nos bairros burgueses do Rio de Janeiro. Mas eu aturava as pessoas e era aturado, pois eu não era um caso perdido aos olhos de Jesus. Havia uma chance para mim. Em minha opinião, a chance era sair dessa cidade o mais rápido possível. Para o restante da cidade, uma simples ida na igreja nos domingos resolveria meu problema.

Mas para a boiolagem, não havia solução. Jesus Cristo não aceitava boiolas em seu lar. Jesus, muito esperto, tinha tratado logo de impedir que os boiolas se multiplicassem do modo convencional. No começo funcionou, mas os homens reinterpretaram as escrituras sagradas, criaram a televisão, o microondas e a internet, que mais tarde foram dominados pelos boioloas que aprenderam a utilizá-los como instrumentos para o mau. A boiolagem era um caminho sem volta e estava sendo difundida e seguida cegamente. Os boiolas estavam destinados a vagarem pelas ruas da cidade e o caos seria apenas questão de tempo. E todo bom divinopolitano sabe que não há muitas diferenças entre Divinópolis e o mundo. Se hoje Divinópolis se prostituía, amanhã seria o mundo...

Eu e a sociedade divinopolitana tentamos esquecer nossas diferenças e nos juntamos para combater o mau maior. A sociedade divinopolitana rezava, fazia promessas e fazia cara feia toda vez que aparecesse um boiola na novela das oito. Não adiantava. Eu tentava passar mais tempo nos bares, ouvia mais rock n roll no volume máximo e andava com uma camisa de futebol diferente todos os dias. Não adiantava.

Minha angústia não era opcional, mas era momentânea. Bastava eu voltar para Belo Horizonte e tentar esquecer o caos que era obrigado a contemplar durante os feriados e fins de semana. Mas eu não queria ter raízes numa terra de boiolas. Não queria ter histórias para contar com um plano de fundo manchado pela desordem e volúpia. Porém a situação se complicava cada vez mais. Enquanto eu vivia nos bairros sujos e distantes da minha cidade adotiva, Divinópolis iria se consolidando no ramo boiolístico e a notícia de cidade dos boiolas já ultrapassavam os limites estaduais. Mudei-me de cidade mais algumas vezes, cheguei até a sair do estado, mas não adiantou. Estava difícil esconder os segredos de Divinópolis.

Com o tempo e a primavera, vieram as paradas boiolas, as calças jeans coloridas de boiolas e a Primeira Igreja dos Boiolas do Reino de Deus. Era boiolagem demais.

Com o tempo, eu desisti. Não havia mais como voltar para Divinópolis. Não havia como limpar todas as merdas que os boiolas fizeram. Fui motivo de zombaria por todas as cidades que passei. A única solução foi tentar a vida no exterior.

Jesus havia me dado uma salvação. Na Europa, todos me entendiam. Sentiam minha angústia e contemplavam minha dor com uma empatia ímpar. Eu era compreendido nos botecos, nos cafés, no Facebook e nas teses acadêmicas. As vendas dos meus livros deslancharam como a boiolagem em Divinópolis.

Após longos e felizes anos na Europa, eu não sentia saudade de Divinópolis, do Brasil ou da minha juventude. Me sentia anestesiado e devidamente disfarçado com rugas, calvície e um ar de intelectual decadente. Fui convidado para passar uns dias em Belo Horizonte. Havia um convite muito bem remunerado para dar uma palestra em uma universidade. Após ter visitados diversos países, achei que o meu trauma já tivesse sido superado. Tive oportunidades de contemplar lugares piores do que o Brasil e com mais boiolas do que Divinópolis.

Na universidade conversei com alguns professores, que pareciam ter feito a lição de casa: puxaram muito meu saco e não se ousaram a comentar sobre meu lugar de origem. Logo após tomei um bom café mineiro antes de entrar no anfiteatro. Lembrei do café de minha avó. Lembrei de Divinópolis e das poucas coisas boas que existiam lá, como o café, a minha avó e meu cachorrinho que morreu de velhice (ou de tédio).

Ao entrar no anfiteatro, recebi uma apresentação sebosa, uma salva de palmas, uma jarra com água e uma cadeira confortável. Depois me deram um microfone. Comecei perguntando se haviam divinopolitanos presentes. Uns vinte levantaram a mão. Mandei todos à merda. Falei algumas verdades que me engasgavam há anos. Fui vaiado. Retruquei falando sobre o número das minhas vendas na Europa. Fui ainda mais vaiado. Algumas pessoas começaram a sair do recinto, outras começaram a rasgar meus livros. Outros arremessaram livros covardemente contra a velha casca de um escritor mal compreendido. Vi o ódio nos olhares de cada divinopolitano. Pareciam ogros possuídos por uma raiva instantânea que duraria a eternidade. Pareciam homens.

Fui impedido de continuar a palestra, saí vaiado e com uma escolta de seguranças. Já havia um carro da universidade me esperando. Para o aeroporto? Perguntou-me o motorista. Perguntei se já existiam vôos regulares para Divinópolis, ele respondeu que não. Paguei-o qualquer cinqüenta pratas para ficar de boca fechada e mandei-o correr para a rodoviária a tempo de pegar o próximo Teixeira.



Notas do Autor: Lux Lounge: Nova boate quase gay de Divinópolis.

Teixeira: Única empresa de ônibus que faz o trajeto Belo Horizonte - Divinópolis.