domingo, 31 de maio de 2015

Apartar

        Naquele dia abri a porta, saí de casa e dei de cara comigo mesmo. Comigo embalado. Pacote pardo todo meio assim, fechado, lacrado, devidamente selado, identificado, carimbado, assinado, protocolado e escrito bem grande de um lado FRÁGIL e no outro DEVOLVER AO REMETENTE. O susto foi grande. Bom mineiro, guarneci-me em desconfianças e analisei o pacote minuciosamente. Cheirei, e era meu cheiro. Ouvi, e eram meus ruídos. Sacudi, e era meu sacolejo. Abri, e me era eu. Assustadamente me vi dentro daquele pacote. Aparentemente, lá estava eu, íntegro, com os mesmos defeitos e marcas de fábrica que há tantos anos me caracterizavam até mesmo a olho nu. Aparentemente devolvido em mesmo estado. Mas algo me dizia o contrário. Algo além dos meus sentidos, além do cheirar, ouvir, sacolejar e contemplar, me dizia o contrário. Faltavam partes que não sabia o nome. Partes que não sabia se poderiam ser substantivadas.

Boa parte de mim não voltou. Embora o esforço louvável de me embalar assim, com tanto cuidado e me devolver assim, na porta de casa, faltava algo em mim.
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Achei melhor entrar comigo. Não era recomendável me deixar ali abandonado na porta de casa sujeito à chuva, ao frio, ao calor, à vida, ao mundo. Meu coração cristão enrustido não me deixaria fazer isso – amar ao próximo como a ti mesmo. Com toda minha pouca força que me é peculiar, me arrastei por alguns minutos até entrar comigo. Fracos ou não, nos carregar nessa situação é pesado demais.

Me deixei ali mesmo na sala de estar. Tentei procrastinar o problema, apesar de não me caber debaixo do tapete. Tranquei a porta de casa e saí. Tentei levar o dia normal, fingir que nada havia acontecido. Mas aquilo não tinha nada de normal. Como assim me receber de volta? Achei melhor voltar e me encarar.

Me olhei e eu ainda estava ali do jeito que havia me deixado. Ainda me faltavam as partes que não sabia o nome. Era difícil me ver assim nesse estado de semissobrevivência e semi-integridade. Estavam ali meus cabelos, olhos, boca, tronco, membros. Estavam ali, mas eu não me estava por inteiro. Me encarei por um bom tempo e cada vez mais me perdia  em indagações comigo mesmo.

O desespero era evidente, questão de tempo. E me tomei em desespero. Fiquei com medo de não resistir tão exposto ao mundo e suas condições e temperaturas normais. Resolvi me guardar no freezer. Era necessário gelo. Era necessário me caber naquele freezer. Lá ganharia tempo. Lá estaria conservado e seguro até resolver o que fazer comigo.

Não me caberia no gelo sem me destroçar. Peguei o cutelo e sem dó de mim enfiei bem forte logo no peito. Me abri, me destrocei por inteiro, separei lado de cá e lado de lá. Procurei desesperadamente por aquilo que me faltava e não conhecia o nome. Me destrocei cada vez mais. Descobria partes em mim que não conhecia e as estraçalhava em seguida. Não eram o que eu procurava. Todas partes insignificantes. Apenas apêndices. Não me serviriam, estavam ali apenas para ser estraçalhadas. O que procurava, o que me faltava e não tinha nome, não encontrei. Não encontrei. Não sabia o que encontrar.  

Quando me caí em mim, apenas me vi ali em meio a tantos pedaços que eu mesmo fragmentei. Destroço particular. Parte ocular: me olhei mais uma vez e chorei. E como chorei.

Chorando percebi que não eram as lágrimas que me faltavam. E também por isso chorei.
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Inconfidência de mim
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Ainda não sei o que me falta, mas cansei de me guardar em gelo. Entre a salvação e o castigo, distribuí partes de mim por aí.

Vez ou outra dizem que viram não sei que parte de mim não sei com quem não sei em que lugar. Acredito que muitas vezes nem acredito. Entre a lenda e a história, que me sirva de exemplo para mim. Não me quereria mártir, falsamente imaculado, embalsamado, congelado - falso todo do que já não pode ser mais inteiro. Fiz a minha parte com esta parte que aqui estou: escrevi.

sábado, 4 de abril de 2015

Mais ao léu

         Já não incomodava tanto ouvir a pergunta que mais ouvia durante esses últimos tempos. “Está tudo bem?”. “De certa forma, sim” respondia João Carlos. De certa forma significava Abreu. Abreu do edifício ao lado, do Residencial Mutarelli, morador do 402, o quase vizinho de janela de J. Carlos.
        Para João C. era mais fácil passar os dias respondendo sobre sua saúde e se esconder. Sozinho, como sempre, em seu apartamento, passou muito tempo escondido, dividindo espaço com os frascos de xampu e condicionador entre um basculante do banheiro observando a vida de Abreu acontecer. Dali o Abreu não o enxergaria nunca, ele se garantia há tempos. Observava tudo. Acompanhou religiosamente o término do casamento do quase vizinho. Às 19h15 de segunda a sexta começavam os bate-bocas que se esquentaram cada vez mais até a explosão final. Era domingo de Páscoa e se fez muito barulho. Louças, plásticos, madeiras, vidros, porcelanas, sentimentos. Tudo sendo jogado pelos ares em uma dança frenética e João Carlos fechando os olhos em elevadíssimo estado de graça tentando descobrir apenas pelo barulho o que Abreu estava recebendo em sua direção. Separaram-se. Abreu passou a ser sozinho, assim como J. Carlos do basculante indiscreto.
      Carlos observou diariamente a solidão de Abreu se solidificar. Se achava superior nesse mundo. Era tão sozinho há tanto tempo que se achava mais forte e preparado que Abreu para habitar o vazio. Essa era “a parte ruim de ter companhia!”, se dizia João C. a todo instante enquanto demonstrava às paredes seu irônico sorriso amarelo amargo.
        Fumante assumido e praticante se descobriu com câncer bucal, assim, do nada, como ele diria ou assim, inevitavelmente, como diriam os médicos. Lhe doía a boca, lhe doíam as palavras que pouco pronunciava, lhe doía Abreu apenas sozinho e sem a ingrata companhia do câncer.
      Não se doeu assim por tanto tempo. Em uma de suas várias idas ao Hospital do Câncer, encontrou Abreu cabisbaixo em uma sala de espera. J. Carlos não sabia como agir. Pouco havia visto Abreu assim, na sua frente. Apesar de abatido, Abreu fez a boa-vizinhança. Se abriu para João Carlos como o câncer abria os dois por dentro. Contou detalhes da doença, dos sintomas, das dificuldades, do divórcio com a ex-mulher. Disse até que provavelmente não teria tempo de vida restante para ver o Vasco campeão outra vez. Carlos começou a sentir um tesão incontrolável por dentro. Uma sensação de leveza tomava seu corpo. O tumor de sua mediocridade de espírito lhe parecia benigno. Sorriu. Sorriu amarelo amargo. Gargalhou de tossir um fio de sangue. Abreu se assustou. Como poderia alguém rir tanto de tamanha desgraça com outra pessoa? João C. se deu conta de que não estava apenas entre as paredes mofadas de seu apartamento. Pediu desculpas ao quase vizinho. Disse que câncer na boca é assim mesmo. Às vezes dá isso. Sabe como é, né? A boca fica foda. Não dá pra segurar. É câncer. Não tão grave igual o seu, no cérebro, mas é foda, Abreu. Não dá pra segurar. Não é tão grave igual o seu. Não é tão grave igual o seu.
          Já não incomodava ouvir a pergunta que mais ouvia durante esses últimos tempos. Observava ainda mais freneticamente a vida do quase-vizinho. Quando não encontrava Abreu no Hospital, observava-o do seu velho basculante. Abreu ficou careca em uma velocidade absurda. Perdeu muito dos poucos quilos que tinha. Definhava-se em casa cada dia mais. Do outro lado, J. Carlos ria sem nenhum pudor tudo o que segurava no Hospital. Misturava sangue com cigarro, sadismo com dor. E gol do Flamengo. Vasco mais uma vez vice-campeão do Campeonato Carioca.
        Já se alegrava de ouvir a pergunta que mais ouvia durante esses últimos tempos. Dizia que estava bem, que poderia ter sido pior. Que câncer no cérebro é muito pior. “O Abreu que morava ao prédio ao lado está com câncer no cérebro sabia?”, não se cansava de dizer às velhinhas da igreja que o abordavam na rua com olhar de piedade. “Sim, ele está sim. Não está nada bem. Direcionem suas orações para aquela pobre alma...”.
Nem com todas as orações de todas as velhinhas do mundo Abreu se salvaria. E não se salvou. João Carlos acompanhou seus últimos dias no hospital apostando em sua mente em qual dia Abreu iria desencarnar. Errou por dois dias.
           E por um dia inteiro ficou velando o corpo de Abreu. Dizia que a família do morto não se preocupasse, de que para ele não seria problema nenhum passar a madrugada ali velando o corpo. Às vezes simulava uma ida ao banheiro, às vezes simulava ir tomar um café, às vezes simulava um ataque de choro. Precisava sair por certos momentos para dar conta de sua crise de riso. Abafava o som de sua gargalhada com um lenço imundo de sangue e catarro.

        Durante o enterro, só conseguia pensar em uma vaga de um mausoléu vazio quase ao lado dos restos mortais de Abreu. Simulou mais um crise de choro e foi ao coveiro perguntar como fazia para reservar a vaga, se resolvia essas coisas ali com ele mesmo. Voltou no outro dia, já com os papeis assinados, serviços funerários pagos, uma gorjeta sincera ao coveiro. E voltou em definitivo, mais um dia depois. Caixão bonito, de madeira boa, pra combinar com o mausoléu. Os poucos que foram no velório, no enterro, simulavam ataques de choro para se encontrar e se perguntar: “será que câncer na boca dá isso mesmo de o morto parecer que morreu sorrindo?”.