terça-feira, 19 de outubro de 2010

Ritápolis

Rita tinha uma cara de quem algumas vezes na vida, ouviu alguém dizer que era bonita. Rita acreditava nisso com muita convicção, embora não tenha ouvido isso de um número considerável de pessoas com boas índoles e boas intenções.

Se tratando da aparência, Rita não era nem um pouco bonita. Tinha nome de gente feia, tinha cara de gente feia, tinha problemas de gente feia, tinha costumes de gente feia, tinha um cachorro de estimação de gente feia e comida na geladeira de gente feia. Mas tinha amores de gente bonita.

Rita amava rapazes muito bonitos. Um deles se chamava Paulo.

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Paulo era considerado bonito pelos feios e pelos bonitos. Paulo não fazia muita coisa da vida, além de ser bonito. Já Rita, sofria de vários dilemas todos os dias, só pra tentar mater sua feiura (ou beleza, como ela gostava de chamar). Ela sempre estava muito feia depois de acordar, então passava uns bons vinte minutos e umas vinte gramas de creme capilar pra tentar abaixar o seu cabelo duro. Não adiantava. Qualquer coisa que fizesse, não adiantava. Creme capilar, tintura de cabelo, cirugia plástica, simpatia, macumba ou o que quer que seja. Rita continuava feia e passava o resto do dia com cara de quem é feia. Mas disseram que ela era bonita umas vezes, então...

Paulo passava o dia com cara de quem é bonito. Mas tinha o azar de encontrar com gente feia de vez em quando. Essa gente feia ficava olhando Paulo, assim como os bonitos faziam, mas tinham aquele olhar de gente feia. Isso incomodava Paulo, porque ele era muito bonito.

Paulo sentia que ele embelezava o mundo. Quando alguma pessoa feia olhava para ele, segundo ele, acabava pegando um pouco de sua beleza. Era uma quantidade muito pequena de beleza, se comparada ao tamanho da beleza de Paulo. Mesmo assim se sentia incomodado, pois morria de medo de perder sua beleza por tantos olhares que recebia. Paulo ficaria feio definitivamente uns quarenta anos mais tarde, mas isso não é assunto para agora.

Uma vez Paulo decidiu parar de sair. Não queria dar mole para o resto do mundo. Preferia ficar trancado em casa olhando para o espelho e se lembrando das mulheres que pegou. Não conseguia se lembrar de nenhuma feia e de nenhuma à sua altura. Namorando o próprio espelho, descobriu que ficava ainda mais bonito se deixasse a barba crescer por alguns dias. Então resolveu parar com as mulheres por algum tempo. Só até o tempo da barba crescer, dizia ele, depois ficaria fácil encontrar uma mulher do seu nível.

Mas as mulheres não paravam com Paulo. As mulheres não esperariam a barba de Paulo crescer para vê-lo ainda mais bonito. Desejavam de Paulo a todo instante, esteja ele com barba, careca ou com uma perna a menos. Elas insistiam de toda maneira pela volta de Paulo, ligavam para ele o dia inteiro, enviavam e-mails, tocavam o interfone desesperadamente... mas nada. Paulo estava destinado a permanecer no seu retiro da beleza.

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Rita conheceu Paulo de uma maneira estranha.

Enquanto Paulo estava no seu retiro domiciliar, Rita estava em um salão de beleza. Paulo estava se admirando no espelho e Rita estava lendo uma revista feminina e ouvindo algumas fofocas. A revista dizia o que uma mulher deve fazer para ficar com seu amado uma semana e se deveria ou não fazer amor logo no primeiro encontro. As fofocas diziam que todos os homens não prestavam. TODOS não prestavam. Rita, enjoada daquela conversa, pegou a revista, colocou-a na bolsa e saiu do salão com cara fechada. Ela saiu no meio do seu corte, sem dar satisfação e dinheiro a ninguém. Saiu feia como ninguém, com metade do cabelo cortada e outra metade "estilo-Rita".

Enquanto prelambulava pelas ruas, alguns fios de cabelo de Rita iam caindo, formando um inigualável rastro de feiura por onde ela passava. Provavelmente era culpa de algum dos milhares de produtos químicos que a cabeleilera havia passado no cabelo de Rita, tentando poupá-la de tanta feiura. Mas nada funcionava. Rita continuava feia e continuava se achando bonita, pois alguém, há muitos séculos atrás, disse que ela era bonita...

Rita andou e andou pelas ruas, até achar um prédio com várias garotas bonitas na porta. As garotas estavam ali em frenesi, aguardando algum sinal vindo de Paulo. Todas estavam tomadas pelo sentimento de admiração por Paulo, que parecia ser contagiante. Ali só se falava de beleza e de amor, então Rita parecia ter encontrado seu lugar ideal. Resolveu puxar papo com algumas três garotas que ali estavam. Ao primeiro olhar, as garotas perceberam como Rita era feia. Fizeram cara de nojo ao perceber o rastro de seus cabelos no chão. E claro, ficaram com medo de pegar a feiura de Rita. E começaram a gritar sem motivos e correr sem sentido pra qualquer lugar. Só queriam estar ali, longe de Rita.

Rita não entendeu nada. Ficou muito triste, pois tinha acabado de perder de vista aquelas pessoas que eram como ela. Elas eram tão bonitas e amavam tanto... eram tão iguais a Rita, mas agora tinham ido embora, todas foram embora em frações de segundo. Rita apenas sentou-se na porta do prédio e resolveu chorar.

O mundo de Rita havia voltado. Ela continuava se achando a última pessoa bonita do mundo que tinha amor pra dar. Tudo parecia estar perdido para Rita, que parecia começar a enxergar o mundo com os olhares de gente feia.

Enquanto isso, lá no oitavo andar, Paulo se deu conta que as mulheres haviam parado de te perseguir. Achou tudo muito estranho e resolveu dar uma saidinha na porta do prédio pra ver o que tinha acontecido. Chegando lá, viu apenas Rita cabisbaixa e chorando soluçadamente. Achou que tudo melhoraria se chegasse mais perto dela, ou seja, se ela podesse contemplar mais de perto a sua beleza.

Não funcionou. Nem a beleza de Paulo era suficiente para amenizar o sofrimento de Rita. Conversaram por alguns minutos. Paulo ouviu todo dilema de Rita. E a entendeu perfeitamente, pois sabia o quanto era difícil ser bonito. Mas nada fazia passar o choro de Rita. Tantos dias sem mulheres (foram dez dias, que mais pareceram uma eternidade para Paulo) pareciam ter mudado um pouco dos conceitos universais sobre beleza.

Paulo, desesperado, levou Rita para o seu quarto, tirou sua roupa e amou loucamente durante mais de uma hora. Rita não chorou durante essa hora, mas voltou a chorar quando Paulo virou-se para o lado e dormiu. Rita aproveitou a situação, vestiu sua roupa, pegou alguns lenços de papel para enxugar suas futuras lágrimas e foi embora à francesa.

Paulo acordou desesperado, sem Rita ao seu lado. Apenas pode se contentar com um bilhete dizendo "Nós, as pessoas bonitas que sabem amar, somos muito poucas hoje em dia. Sinto muito que você não pertença a esse seleto grupo de pessoas. Te desejo melhor sorte na próxima encarnação".

Paulo refletiu durante longos cinco minutos e achou melhor tentar a sorte na próxima encarnação. Abriu a janela do seu quarto, ainda com o cheiro de Rita e jogou-se do oitavo andar. Paulo e o cheiro de Rita tinham ido embora daquele templo da beleza, venerado tantas vezes por tantas pessoas.

Rita nunca mais soube de Paulo. Nunca mais procurou saber de Paulo. Nem de Paulo, nem de beleza, nem de amor, nem de nada.

Rita, finalmente, havia acordado, se olhado no espelho e se achado feia.

domingo, 17 de outubro de 2010

Cuecas

minha mãe sabe o que fazer
sabe lavar minhas roupas
colocar pra secar, passar
e depois guardá-las na mala
e se despedir de mim

ela sabe
que tem que esconder bem minhas cuecas
debaixo de um monte de camisas
que se sujarão com bebidas
e federão cigarro

as cuecas, ao menos as cuecas
eu vou lavar.
vou olhar na mala, no varal, nas gavetas
e vou perceber que só tenho umas três
então precisarei lavá-las.

mas vai bater uma chuva
daquelas violentas
quinta-feira à tarde
e assim vai ficar o tempo por uns dias
até eu ligar pra minha mãe

e perguntar o que eu devo fazer
ela vai me falar sobre a saudade
sobre a cidade
e sobre a missa que foi.
eu voltarei a perguntar das cuecas.
e ela vai se derreter toda
mas vai acabar entregando
e dizendo que tem mais umas cinco escondidas na minha mala.

então a agradeço,
despeço-me
e prometo ligar em breve.
paro de xingar Deus e a chuva.


e saio para beber,
mesmo com a chuva,
com a cidade desabitada
e com a falta de dinheiro.

porque minha mãe deve ter algum dinheiro guardado e muito bem escondido num banco.

À Procura

já imaginei
achar o meu amor numa padaria
comprando dois reais de mussarela
fechando a cara
e dizendo não quando a moça perguntar:
"pode ser dois e quinze?"

ou achar a foto dela
atrás da embalagem de um maço de cigarros
me advertindo sobre os perigos da vida
eu diria:
"foda-se, sua vadia"
e contemplaria seu silêncio
e a guardaria no meu bolso

poderia também achá-la
numa aula de yoga
demonstrando sua flexibilidade
ainda acanhada.
muito pouco aproveitada
devido à falta de devaneios
dos últimos trinta homens que a comeram.

nada de atrizes de cinema,
líderes de torcida, putas
ou inteligentes.

e é só isso.
não tenho mais nenhuma exigência.


quero:
uma esposa,
uma sina,
dois filhos,
uma amante.
e mais uns pequenos pecados.

quero ir na padaria de manhã
comprar queijo e cigarros
com minha camisa de hippie,
fingindo ser calmo e praticante de yoga.

há quem me imagina assim.