Já não incomodava tanto
ouvir a pergunta que mais ouvia durante esses últimos tempos. “Está tudo bem?”.
“De certa forma, sim” respondia João Carlos. De certa forma significava Abreu.
Abreu do edifício ao lado, do Residencial Mutarelli, morador do 402, o quase
vizinho de janela de J. Carlos.
Para João C. era mais fácil
passar os dias respondendo sobre sua saúde e se esconder. Sozinho, como sempre,
em seu apartamento, passou muito tempo escondido, dividindo espaço com os
frascos de xampu e condicionador entre um basculante do banheiro observando a
vida de Abreu acontecer. Dali o Abreu não o enxergaria nunca, ele se garantia
há tempos. Observava tudo. Acompanhou religiosamente o término do casamento do
quase vizinho. Às 19h15 de segunda a sexta começavam os bate-bocas que se
esquentaram cada vez mais até a explosão final. Era domingo de Páscoa e se fez
muito barulho. Louças, plásticos, madeiras, vidros, porcelanas, sentimentos.
Tudo sendo jogado pelos ares em uma dança frenética e João Carlos fechando os
olhos em elevadíssimo estado de graça tentando descobrir apenas pelo barulho o
que Abreu estava recebendo em sua direção. Separaram-se. Abreu passou a ser
sozinho, assim como J. Carlos do basculante indiscreto.
Carlos observou diariamente
a solidão de Abreu se solidificar. Se achava superior nesse mundo. Era tão
sozinho há tanto tempo que se achava mais forte e preparado que Abreu para
habitar o vazio. Essa era “a parte ruim de ter companhia!”, se dizia João C. a
todo instante enquanto demonstrava às paredes seu irônico sorriso amarelo
amargo.
Fumante assumido e
praticante se descobriu com câncer bucal, assim, do nada, como ele diria ou
assim, inevitavelmente, como diriam os médicos. Lhe doía a boca, lhe doíam as
palavras que pouco pronunciava, lhe doía Abreu apenas sozinho e sem a ingrata
companhia do câncer.
Não se doeu assim por tanto
tempo. Em uma de suas várias idas ao Hospital do Câncer, encontrou Abreu
cabisbaixo em uma sala de espera. J. Carlos não sabia como agir. Pouco havia
visto Abreu assim, na sua frente. Apesar de abatido, Abreu fez a
boa-vizinhança. Se abriu para João Carlos como o câncer abria os dois por
dentro. Contou detalhes da doença, dos sintomas, das dificuldades, do divórcio
com a ex-mulher. Disse até que provavelmente não teria tempo de vida restante
para ver o Vasco campeão outra vez. Carlos começou a sentir um tesão
incontrolável por dentro. Uma sensação de leveza tomava seu corpo. O tumor de
sua mediocridade de espírito lhe parecia benigno. Sorriu. Sorriu amarelo amargo.
Gargalhou de tossir um fio de sangue. Abreu se assustou. Como poderia alguém
rir tanto de tamanha desgraça com outra pessoa? João C. se deu conta de que não
estava apenas entre as paredes mofadas de seu apartamento. Pediu desculpas ao
quase vizinho. Disse que câncer na boca é assim mesmo. Às vezes dá isso. Sabe
como é, né? A boca fica foda. Não dá pra segurar. É câncer. Não tão grave igual
o seu, no cérebro, mas é foda, Abreu. Não dá pra segurar. Não é tão grave igual
o seu. Não é tão grave igual o seu.
Já não incomodava ouvir a pergunta que mais
ouvia durante esses últimos tempos. Observava ainda mais freneticamente a vida
do quase-vizinho. Quando não encontrava Abreu no Hospital, observava-o do seu
velho basculante. Abreu ficou careca em uma velocidade absurda. Perdeu muito
dos poucos quilos que tinha. Definhava-se em casa cada dia mais. Do outro lado,
J. Carlos ria sem nenhum pudor tudo o que segurava no Hospital. Misturava
sangue com cigarro, sadismo com dor. E gol do Flamengo. Vasco mais uma vez
vice-campeão do Campeonato Carioca.
Já se alegrava de ouvir a
pergunta que mais ouvia durante esses últimos tempos. Dizia que estava bem, que
poderia ter sido pior. Que câncer no cérebro é muito pior. “O Abreu que morava
ao prédio ao lado está com câncer no cérebro sabia?”, não se cansava de dizer
às velhinhas da igreja que o abordavam na rua com olhar de piedade. “Sim, ele
está sim. Não está nada bem. Direcionem suas orações para aquela pobre
alma...”.
Nem com todas as orações de
todas as velhinhas do mundo Abreu se salvaria. E não se salvou. João Carlos
acompanhou seus últimos dias no hospital apostando em sua mente em qual dia
Abreu iria desencarnar. Errou por dois dias.
E por um dia inteiro ficou
velando o corpo de Abreu. Dizia que a família do morto não se preocupasse, de
que para ele não seria problema nenhum passar a madrugada ali velando o corpo.
Às vezes simulava uma ida ao banheiro, às vezes simulava ir tomar um café, às
vezes simulava um ataque de choro. Precisava sair por certos momentos para dar
conta de sua crise de riso. Abafava o som de sua gargalhada com um lenço imundo
de sangue e catarro.
Durante o enterro, só
conseguia pensar em uma vaga de um mausoléu vazio quase ao lado dos restos
mortais de Abreu. Simulou mais um crise de choro e foi ao coveiro perguntar
como fazia para reservar a vaga, se resolvia essas coisas ali com ele mesmo.
Voltou no outro dia, já com os papeis assinados, serviços funerários pagos, uma
gorjeta sincera ao coveiro. E voltou em definitivo, mais um dia depois. Caixão
bonito, de madeira boa, pra combinar com o mausoléu. Os poucos que foram no
velório, no enterro, simulavam ataques de choro para se encontrar e se
perguntar: “será que câncer na boca dá isso mesmo de o morto parecer que morreu
sorrindo?”.