quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Prefiro café


Minha ex-dentista (e dá até um certo orgulho chamá-la assim de minha ex) era bonita demais para despertar confiança em alguém. Loira, gostosa, cabelos sempre ao vento do ar condicionado do consultório. Na flor da idade e com seu sobrenome italiano, daria pra ela a média de uns 26 aninhos muito bem vividos na gema da Zona Sul e um diploma de Odontologia conseguido após muito e$forço na faculdade particular mais cara da cidade. Sempre com jeans justo como o inferno cristão, tênis branco das melhores marcas, e debaixo do jaleco nunca lhe faltava uma blusinha levinha e casual que não chamasse atenção. A atenção ficava mesmo por conta de seus peitos.

Ah, aqueles peitos. Certamente a forma mais eficaz de anestesia já inventada. Eu lá sempre inclinado naquela cadeira desconfortável, com uma luz enceguecedora direto nos olhos sempre sonolentos e com a boca aberta. A boca aberta, as babas caindo, uma mangueirinha sugando tudo que encontrasse por dentro, até mesmo o oxigênio necessário para manter os pulmões de um pobre asmático funcionando razoavelmente. Aqueles peitos sempre pulando em direção à boca aberta. Peitos estes, que como a sua dona, eram bonitos demais para despertar a confiança de alguém. Sempre querendo escapar, pular pra fora da blusa, arrebentar os botões do jaleco e partir do plano das ideias para o glorioso mundo das realizações.

Das nossas conversas, feitas através de onomatopeias e sons monossilábicos possíveis de se pronunciar com a maldita mangueirinha sugadora, lembro-me de pouca coisa produtiva. O que marcou mesmo foi a blasfêmia soltada por aquela pecadora. Lembrei-me na hora das bruxas sedutoras travestidas de fadas, prontas pra dar o bote nos nobres cavaleiros solteiros. Lembrei-me das bruxas queimadas em praça pública na Idade Média, e por um instante, pareceu-me um castigo brando demais.

Foi assustador. Em português bem claro, com seus lábios deliciosos com batom bem claro, ela amaldiçoou-me:

-Seus dentes vão amarelar. Tem que parar de tomar Coca-Cola e café.

Vá de retro, Satanás!  Exorcizo-te in nomine Dei! The Power of Christ compels you!

Quisera eu ter também uma mangueirinha sugadora de pecados, para limpar a boca desse povo que não sabe o que fala. Quisera eu ter uma bíblia, uma água benta com ou sem flúor, falar cinco línguas indo-europeias mortas. Quisera eu ter defesa contra peitos. Quisera eu ter pálpebras nos ouvidos para blindá-los de escutar tanta merda.

-Prefiro ficar sem dentes a ficar sem café. Pra mim já deu. Foi bom te conhecer. Tome aqui seus cento e poucos reais. Gaste-os pagando uma das oito prestações de um sapato de grife seu. Calce esse sapato que vai empinar ainda mais sua bunda. Pegue essa sua bunda e conquiste algum empresário numa sexta-feira na boate top da cidade enquanto escuta sertanejo. E que esse empresário pegue esses seus peitos e...

Apertei os peitos dela bem forte. Ela gritou, chamou socorro, me chamou de louco. Dei-lhe razão. Não consigo me defender de quem me chama de louco. Saí, fui direto pra padaria e pedi um expresso para aproveitar os dentes que me restavam.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Vermelho como o céu


Na minha antiga rua da minha antiga cidade até que passavam alguns carros, porque era praticamente caminho pro Centro. Ainda mais naquela vez quando arrebentaram uns canos e uns esgotos na rua de cima, aí os carros todos passavam de lá pra cá, desviando a rota cotidiana, indo e vindo tudo apertadinho no meio das terras, e eu ficava me sentindo morador de cidade grande no meio daquele montão de carros.

Ficava imaginando eu morando num apartamento, desses de cidade, que eu pegaria elevador pra descer e ir à padaria às cinco da tarde e no meio disso tudo cumprimentar o porteiro falando de futebol. Ficava também entre o alívio e a dó, sabendo que já passei na idade de jogar bola na rua, mas sentindo pena dos meninos que perderiam essas coisas fundamentais.

Já nas ruas lá de baixo, nunca passava carro nenhum. Nem carro, nem menino jogando bola; mal mal passava o leiteiro. E é de uma rua de lá que eu lembro duma história. Foi o caso do Seu Nelson, coitado. Foi num dia de semana mesmo, só não lembro o qual. Mas o fato é que o Seu Nelson tava lá, sentadinho na porta de casa proseando com um vizinho, falando sobre o que falava há tempos: o quanto os tempos estavam mudados. E nisso aí, conversa vai, conversa vem, carro não vai, carro não vem, veio no Seu Nelson uma vontade de chamar o compadre, que morava doutro lado da rua pra prosear também.

Vruuuuuum!!!, Bbââââââââ!!!, Qrrrrrrrrr!!!

Segundo Seu Nelson, um estrondo parecido com desses filmes americanos que falam inglês. Achou que ia morrer igual ator alto de olho azul. Mas com efeitos especiais da vida real, se safou por um triz, por descapricho do azar, por milagre de Nossa Senhora.

Mas foi mesmo um baita dum barulhão, carro vermelho em alta velocidade, buzina cortante carregada por metros e metros, e uma freada brusca lá na frente só pra não poder falar que o motorista não parou.

A rua inteira ouviu e todo mundo saiu de casa preocupado: ou era o apocalipse ou era gente da cidade passando por ali, embora a maioria não enxergasse muito a diferença das duas situações. O vizinho que conversava, se acovardou, virou a cara, endureceu o corpo, fechou os olhos, tapou o ouvido, engoliu seco, rezou pro santo.

Dona Jandira, esposa do Seu Nelson, saiu com pressa mesmo sem saber o que tinha acontecido. E viu o pior: Seu Nelson, branco feito leite, enrugado como maracujá e caído ali no chão que nem uma jaca espatifada. Dona Jandira ali parada com a vasilha do angu nos braços e o Seu Nelson lá, parado, escondido na poeira da rua que ele mesmo levantara.

Foi grito pra tudo que é lado. Grito, choro, xingamento, reza, palavrão, angu. O motorista, que havia parado pra ver o que aconteceu, achou melhor sair correndo, dessa vez ainda mais rápido do que quando atropelou o Seu Nelson.

Quase que a rua inteira, sem saber o que fazer, só sabia culpar, injustamente, a Dona Arminda, que tinha uns parentes “ricos” de São Paulo que costumavam ir visitá-la de carro. Dona Arminda, em choque com o Seu Nelson esticado e com a rua acusando o povo dela, se defendia: -Não foi ninguém meu não, gente, como cês podem pensar uma coisa dessas? Nunca vi carro vermelho na vida!

Enquanto isso, o pragmático, Armindo, foi socorrer Seu Nelson. Perguntou umas coisas que o velho não conseguiu responder, mais pelo susto do que por qualquer arranhão. Armindo, o pragmático, pegou Seu Nelson nos braços e levou pra casa em frente, a do compadre. Deitou o velho lá na cama de casal, onde ficou quase o dia inteiro.

A casa do compadre havia virado uma mistura de velório e maternidade. Gente feliz pelo Seu Nelson não ter morrido, gente preocupada achando que ela ainda podia morrer. Dona Jandira ficou lá na cadeira ao lado da cama chorando sem parar. Em volta da imagem da santa, formava-se uma roda de velhas a rezar fazendo ligação direta pros céus com terços nas mãos.

A comadre na cozinha, fazendo biscoito de polvilho e café pras visitas que chegavam pra ver o acidentado. Os homens no corredor, falavam sobre o que viram, sobre os barulhos que ouviram e sobre como matariam o motorista se ele voltasse lá na rua. Armindo, pragmaticamente, fazia perguntas pro Seu Nelson regularmente, pra ver se ele sentia isso, se sentia aquilo. Seu Nelson falava que doía mais de susto do que de dor mesmo.

Como Armindo havia alertado, um dia depois Seu Nelson já estava firme como o governo do Getúlio. Tudo resolvido. Hora das velhinhas começarem a pagar as promessas e da Dona Jandira receber as visitas com a receita de biscoito de polvilho da comadre. Hora dos homens escutarem como Seu Nelson se livrou do carro feito agente secreto. Como o vizinho medroso havia fechado os olhos na hora da cena, não havia sobrado testemunhas. Seu Nelson sentia-se aliviado, livre para contar qualquer versão do acontecimento.

Seu Nelson morreu uns dois anos depois, por causa de uma pneumonia. Passou esses uns dois anos contando a história do carro que o atropelou, de como ele viu a cara da morte, etc. Num ponto foi até bom, porque semana passada vi uma história que eu não aguentaria esconder dele.

Tava eu na cidade, no alto do prédio que moro, observando os carros das seis da tarde. E num buzino seco, cortando que nem cachaça, veio um carro desses vermelhos mais novos, e plaft. Atropelou alguém, que nem deu pra ver se era velho igual Seu Nelson ou se era novo como eu. E o velho, ou o novo, morreu. Morreu de verdade. Ficou lá esticado até os bombeiros irem buscar. Ficou lá atrapalhando o trânsito. Todo mundo reclamou que ele ficou lá atrapalhando o trânsito. 

domingo, 2 de setembro de 2012

fluxo

este poema
coloco numa garrafa
e lanço ao mar
na esperança de
um dia
você ler
se não alguém
um dia
ao ler
mesmo sem nos conhecer
vai saber
que ainda gosto de você

sábado, 1 de setembro de 2012

Haicais

Semente
planto uma ideia
haicai é bonsai
de poesia

Fuso-Horário
me oriente
já é poesia 
no ocidente?

Haicais
ando cheio de glória
por caberem
em minha memória

Eurocêntrico
abaixo do trópico
Deus é
misantropo

O segredo
se eu cair 
em mim
rio do tombo

Modéstia
é melhor
me ler,
millôr

Leminski de Poemas
ali se
tem
alicerce

Feliz
até 
um haicai ruim
me lembra Ruiz

sábado, 4 de agosto de 2012

Café com Crime


Foi a própria dor que me curou. Observar, se diluir e então se externar. Só assim é possível não se acalentar. Não saber se está acima ou se existe o abaixo. Afastar-se pra si. Colher das ruas os cânticos da inquietação. Se alimentar de um nós impessoal. Se embriagar de ser cotidiano.

Já avisam as pichações nos muros: só quem é de lá entende.

Valorize seu tato. Há um caminho de evidências. Verão: nada é em vão. Não que seja de valor a arquitetura de um círculo. Não que valha o ingresso. Revolução: as engrenagens ultrapassaram as indústrias. Roda, roda, grande circo vicioso.

Nas sarjetas, nas marquises, um garoto magro com dentes escassos pede esmola para sustentar o vício de viver. O senhor teria um trocadinho pra ajudar? Pobre garoto, comeria mais se tivesse nascido cachorro. Alguns metros a frente, sua mãe o observa. Mulata ossuda e sem expressões, carrega o caçula no colo, pra lá e pra cá. Observe atentamente, moleque. Você herdará a profissão do irmão mais velho.

Cultura é o que se cultiva.

Nossa usina quer nos engravatar. Não faz teatro enclausurado, hermético. Se espalha na cidade como um rio degradado e degradante. Não se espante com o cheiro. É efeito especial. Divina Comédia do purgatório real.

Subam as cortinas. Mais que uma enorme fábrica de panos funcionais. À sua moda, não só se veste bem. Se maquia e se encena à céu aberto. Mal dirigida, faz do viver uma arte; do sobreviver um caos à parte.

 No interior do interior não há beleza.

Semana passada mataram dois. No morro, na pitimba.  Maria Helena não desce mais ao Centro (tá mal falada!). São José já cobra por milagres. Se a Terra é Azul, o céu é negro. Essa é a Nova Holanda: tudo legalizou. Na ponte sobre o Rio, em Niterói, há pedágio (sub)urbano. As encomendas chegam pelo um Porto Novo. Vai lá buscar? Cuidado pra não rodar, vacilão! Patrulha cabocla, herois de si mesmo.

O juízo será nosso final.

Lembro-me do Deus antigo que incendiava cidades quando irado. Para admirar nossa pequenez, somos cúmplices de nós: há fogo de Deus em Divinópolis. Fogo de fumaça branca. Habemus poesia!  Vai saber se foi um cometa ou um anjo de corneta. Homem de fé, só acredito sentindo. Foi aqui mesmo: a flor brotou na linha do trem, no meio de ninguém. Pérola aos poucos.

Entre um café e um crime, carrego como gado caipira marcas de vivência. É para sempre, é evidente: sou daqui. Patente em minha pele está a ambição pré-conformista que torna os divinopolitanos bípedes: ainda vão ouvir falar de mim.

terça-feira, 24 de julho de 2012

sem ter tido


há sempre um sentido a mais
derme
epiderme
poesia.
sensibilidade supracutânea
tato estático

nada
nunca é
somente.

há sempre um desdobramento
recepção emergente;
combustão pressagiada;
dispersão interna.
desaguar de conceber

há sempre um sentido a menos
a menos
que se poetize.
amemos
quem se pulverize.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Declaração de Dependência

E você ainda sabe onde me encontrar. Da minha liberdade, queda livre. Da minha falta de casa, causa. Da minha angústia, vigília. Da minha parte desarraigada ainda procurando abrigo em você. Você nos contêm?

Não me caibo. Tem sido assim. Tenho me tido assim. Talvez você entenda e eu sinta. Talvez você regre e eu confronte. Mas reajo. Reajo, reajo. Porque talvez ainda me haja fé e eu possa te mostrar.

Considere: me faltam mistérios. Minha compleição é quase paisagem. Pouco vou além do peso de minhas palavras. De pouco esconder morrem minhas fronteiras. Todas expectativas são vertigens. Só presumo por lembranças. Eu desejo seu desejo.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Eu odeio o Wellington Paulista

Vai Brasil, libera logo a eutanásia. Acorda logo, deitado eternamente. Acorde, tarde da noite, abra a geladeira, perceba que não tem comida e volte a dormir. Pelo menos dessa vez. Sei lá, dá um jeito, a coisa tá feia. Olhem pro meu lado, nem que seja só agora. Porra, me ajuda aí, caralho. Será que vou ter que escrever uma carta pra presidenta? Pro Senado, Ministério, Tribunal Superior das Coisas Inferiores? Carta do leitor da Veja serve? Mesmo sem ler a porra da Veja, será que serve? Pichar muros, dar chilique na internet ou tentar educar as crianças nas escolas não deve resolver.

Alguma religião proíbe isso? Aquela lá que proíbe transfusão de sangue deve achar “pecado”, com certeza. Porra, Brasil. Vai se importar com os crentes? Deixa que Jesus cuida deles. Aproveita. O país inteiro tá na onda aí de vida pós-morte, reencarnações futuras, passadas, anestésicos, alívio de vida presente. Horóscopo, tarô, búzios, orixás. Vamo aproveitar essa onda pra resolver esse meu problema de uma vez. Vamo dar outra chance pro cara. Pra nós. Apagar a existência. Não toda ela, levaria muito tempo e doeria demais. Cortaremos o mais podre dos galhos. Vamo matar logo o Wellington Paulista, caralho.

Que venham os defensores dos direitos humanos com seus cartazes, marchas, seus barulhos. Tirem Brasília do ócio. Abram uma daquelas CPIs que nunca dão em nada, se for o caso. Liberem números 0800 e botem uma enquete no Fantástico. Os velhinhos, tentando pertencer a este nosso tempo, tentarão discutir a ideia nas padarias. Será eleita a Musa da Eutanásia. Gostosa. Com sua boa bunda dourada como fritura enfeitando as revistas nas bancas de esquina. Sem esquecer, é claro, de suas ideologias e pensamentos. Ela também terá o que falar. “Eu sempre fui super fã da eutanásia e é uma honra pra mim poder representá-la (...) mas na cama pra mim, o homem tem que ser homem, sabe? Tem que ter pegada”.

Vendam, façam minha ideia virar dinheiro e passatempo burguês. Não precisa dar minha parte, dez por cento, gorjeta. Nem botar meu nome nos créditos. Só quero justiça pro meu lado. E não é isso que todo mundo quer, justiça pro seu lado? Então, Brasil! Vamo liberar a eutanásia e dar um jeito no Wellington Paulista.

Muito já poderia ter sido evitado. Cortar o mau pela raiz não é seu forte, né Brasil? Desde seus tempos de Botafogo. Grosso. Desajeitado. Cagão. Chato. Metido. Falastrão. Como chegou lá? Nunca curti ele. Mas também não curtia o Botafogo. Mas agora não, pô. Tá lá no meu Cruzeiro já tem tempo. Desde 2009 não fazendo merda nenhuma, se arrastando na área. Quantos gols fez esse ano? Uns cinco? Ridículo. Enganando a torcida, o técnico, a diretoria. Tentando enganar também o juiz. Simulando pênalti. Se jogando nas canelas dos zagueiros, pulando no chão com técnicas de linguagem corporal dignas de uma modelo&atriz. Porra!

Mas você nunca me enganou, Wellington Paulista. Talvez tenha enganado até a si mesmo, mas não a mim. Eu compreendo sua alma, sua missão neste planeta. Tanto sofrimento recíproco não poderá ter sido em vão. Lutarei pela sua salvação, a eutanásia. Não precisaremos mais de tanta dissimulação. Você lá, natimorto na grande área, e eu do outro lado da tevê sofrendo ao observar a que ponto chegamos. Espetáculo mórbido, ridículo. E caro. Já cansei de vaiar e não ver as cortinas serem fechadas. Não devolverão meu dinheiro, nem meu tempo perdido, nem o Wellington Paulista ao Botafogo. Só façam a justiça de mostrar que antes de ser uma obrigação, a morte é um direito.