Não era “me fazer o bem” que ele queria. Não era mesmo. Paulo
sempre foi assim e só estava ali para torturar cachorro morto; me fazer sentir
menor do que as bactérias que me comiam por dentro. Santa Majestade Paulo, sempre
ele, Paulo, Paulista de São Paulo, sempre mais inteligente, mais equilibrado,
mais forte e mais perto de Deus, ainda que quem flertasse com a morte fosse eu.
Mas ele estava lá, mal consegui abrir os olhos e ele já estava lá. Antes que eu
reconhecesse a fria parede branco-hospital e a cama de metal com o lençol verde
que me reclinaria conforme eu quisesse mas não me daria asas para escapar de
Paulo. Antes de uma enfermeira com pressa, antes de uma refeição sem gosto (ou
com gosto de minha relação com Paulo), antes de me dar conta dos tubos que
enchiam de soro pelas veias, me enchi pelas veias da alma de ódio do sorriso de
Paulo. Aquele sorriso cheio de dentes brancos que parecia ser mais uma peça de
roupa dos trajes obrigatórios da falsa clareza de tudo daquele hospital.
A sua voz irritava meu corpo por inteiro, mas meus ouvidos
faziam a desonra de suportá-la. Seu sotaque paulistano, dizendo que não mais me
abandonaria fazia de meus ouvidos paladar; senti o gosto de suas palavras
vomitadas. Ouvi, inerte naquela cama, seu dizeres de “Eu te perdoo e nunca mais
vou te abandonar”. Minha boca, condenada ao sangue, embora não fosse capaz de
falar, serviu ao menos para despertar o nojo que Paulo sentia e de mim e assim
me fazer escapar de mais um beijo daquele verme que por tanto tempo me comeu.
Ganhei um demorado beijo no rosto com falso afeto e um demorado beijo na testa
com um falso “se cuida”.
“Me cuidar” era a última coisa que Paulo gostaria que eu
fizesse. Meu jeito desajeitado e desesperado ao dar meu último show foi o que
ele mais gostou. Senti que ali meu tiro tinha saído pela culatra, Paulo se
alimentou ainda mais de seu narcisismo disfarçado de amor por mim. Ele agora
estava ali, para cuidar de mim, para me sufocar, para cuidar de mim, para me
dominar, para cuidar de mim, para fazer de mim seu maldito fantoche.
A cada passo de minha morte, dois passos de vida para Paulo.
O que começou em igualdade, no zero, no nível do mar, se tornou uma eterna corrida
de cada um por si. Eu enxergava a linha de chegada, meu fim, minha libertação:
a morte. Paulo, sempre mais ambicioso, se cegava ao subir minhas montanhas e
sempre enxergar o além: haveria limites para sua embriaguez de vida e de
narcisismo?
A verdade é que Paulo havia roubado meu eu. O meu eu e de
tantas outras pessoas que passaram por sua vida. E eu só queria ter passado.
Passado desta vida: pra outra, ou pra nenhuma. E assim fracassei. E assim o
gosto de sangue me calou na cama do hospital. E assim o gosto da morte foi
removido de meu estômago. E assim essa cicatriz na minha barriga me mostra como
os médicos foram como Paulo: mais eficientes em me limpar e saber o que era
melhor para mim. E aqui, nessas linhas, tento morrer mais uma vez. Morrer aqui,
onde Paulo não saberá do velório.