sexta-feira, 27 de junho de 2014

Paulatinamente

Não era “me fazer o bem” que ele queria. Não era mesmo. Paulo sempre foi assim e só estava ali para torturar cachorro morto; me fazer sentir menor do que as bactérias que me comiam por dentro. Santa Majestade Paulo, sempre ele, Paulo, Paulista de São Paulo, sempre mais inteligente, mais equilibrado, mais forte e mais perto de Deus, ainda que quem flertasse com a morte fosse eu. Mas ele estava lá, mal consegui abrir os olhos e ele já estava lá. Antes que eu reconhecesse a fria parede branco-hospital e a cama de metal com o lençol verde que me reclinaria conforme eu quisesse mas não me daria asas para escapar de Paulo. Antes de uma enfermeira com pressa, antes de uma refeição sem gosto (ou com gosto de minha relação com Paulo), antes de me dar conta dos tubos que enchiam de soro pelas veias, me enchi pelas veias da alma de ódio do sorriso de Paulo. Aquele sorriso cheio de dentes brancos que parecia ser mais uma peça de roupa dos trajes obrigatórios da falsa clareza de tudo daquele hospital.

A minha boca, ainda com gosto de sangue, não consegui abrir. Cuspo aqui, agora, o que não consegui naquele dia. Cuspo o sangue já não tão fresco: coalhado de um rancor que bisturi nenhum tiraria. Fui só ouvidos, ódio e ouvidos. Prorroguei involuntariamente uma relação que há muito me acabava e que há pouco eu resolvi acabar. A cada gota de soro que me reidratava, Paulo me tirava duas. Senti certa alegria estranha por conseguir acordar e não estar em coma, apesar que ainda me faltavam certezas sobre meu verdadeiro estado e por quanto tempo estive “dormindo”. O alívio de ser um ser acordado, não mais uma planta estática apenas a ouvir a voz de Paulo. Passei muito tempo assim em estado normal de temperatura e pressão e não queria agregar assim, de bandeja e de cama, mais uma felicidade ao Perfeito Mundo de Paulo.

A sua voz irritava meu corpo por inteiro, mas meus ouvidos faziam a desonra de suportá-la. Seu sotaque paulistano, dizendo que não mais me abandonaria fazia de meus ouvidos paladar; senti o gosto de suas palavras vomitadas. Ouvi, inerte naquela cama, seu dizeres de “Eu te perdoo e nunca mais vou te abandonar”. Minha boca, condenada ao sangue, embora não fosse capaz de falar, serviu ao menos para despertar o nojo que Paulo sentia e de mim e assim me fazer escapar de mais um beijo daquele verme que por tanto tempo me comeu. Ganhei um demorado beijo no rosto com falso afeto e um demorado beijo na testa com um falso “se cuida”.

“Me cuidar” era a última coisa que Paulo gostaria que eu fizesse. Meu jeito desajeitado e desesperado ao dar meu último show foi o que ele mais gostou. Senti que ali meu tiro tinha saído pela culatra, Paulo se alimentou ainda mais de seu narcisismo disfarçado de amor por mim. Ele agora estava ali, para cuidar de mim, para me sufocar, para cuidar de mim, para me dominar, para cuidar de mim, para fazer de mim seu maldito fantoche.

A cada passo de minha morte, dois passos de vida para Paulo. O que começou em igualdade, no zero, no nível do mar, se tornou uma eterna corrida de cada um por si. Eu enxergava a linha de chegada, meu fim, minha libertação: a morte. Paulo, sempre mais ambicioso, se cegava ao subir minhas montanhas e sempre enxergar o além: haveria limites para sua embriaguez de vida e de narcisismo?


A verdade é que Paulo havia roubado meu eu. O meu eu e de tantas outras pessoas que passaram por sua vida. E eu só queria ter passado. Passado desta vida: pra outra, ou pra nenhuma. E assim fracassei. E assim o gosto de sangue me calou na cama do hospital. E assim o gosto da morte foi removido de meu estômago. E assim essa cicatriz na minha barriga me mostra como os médicos foram como Paulo: mais eficientes em me limpar e saber o que era melhor para mim. E aqui, nessas linhas, tento morrer mais uma vez. Morrer aqui, onde Paulo não saberá do velório.

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