sábado, 27 de abril de 2013

O que tenho


        Ele não vai conseguir pegar aquela menina, não vai. Não ele, todo desse jeito dele. Olha lá, diz que fez intercâmbio pra Áustria, Austrália, sei lá pra onde. Já deve tá falando isso com ela. Conhecimento ele tem mesmo. Não vou negar. Fez curso de inglês um tempão quando moleque e judô e natação. Pra mim era só jogar bola, mas nem ligo porque jogar bola era melhor mesmo e a menina não parece ser destas que curte essas coisas de conhecimento e não vai se impressionar. Devia ser eu lá falando com ela, porque sou muito mais simpático e esse cara nem sabe de simpatia. É que ele tem esses dentes brancos e certinhos, olha só, tô vendo até daqui. Os meus dentes são meio amarelados assim e quebrados por conta do café da minha avó que é bom demais e eu tomava bastante, e comia uns biscoitos de polvilho que às vezes ficavam duros depois de um dia pro outro e quebrava, entortava os dentes. Devia ser eu falando com a menina, falando dessas coisas todas da minha vida e ela rindo, passando a mão nos cabelos, olhando pra mim com aqueles olhos cor de verde, sendo cheirosa e eu cheirando sentindo seu cheiro querendo cheirar mais e de mais perto. Eu vou lá, falar com ela, quem sabe um cheiro, eu vou lá, sou simpático e quem sabe. Mas peraí, olha ele lá agarrando ela, pegando beijando apertando indo pro canto e hoje tem.

        Na rua ali aquele outro cara lá falando de gírias com aquele outro. Falso demais. Falso que nem eu falando meu português corretamente. Saber eu sei, mas fica falso. Sabe, não pega bem em mim. Mas saber eu sei, sei dos verbos e todas dessas coisas de ler. Estudei numas escolas péssimas, mas corri atrás, fui à luta, sou batalhador, guerreiro, pardo, devia dar palestras nas escolas ruins, dar exemplos, devia aparecer na tevê, fazer umas propagandas do Governo Federal. Sei de saber português e sei de saber das gírias, conheço os chegados. Não mexem comigo. Quer dizer, teve aquela vez do Fabinho que mexeu comigo, mas não ficou muito bom pra ele, pegou mal, mexer comigo que sou de lá. E daí?, importa é que nunca me assaltaram no meu bairro, tá ligado? E o outro cara ali falando de gírias bem que pode ser assaltado porque acha que tá passando de marginal. Deve tá querendo maconha, comprar a maconha, enrolar a maconha, fumar a maconha. Maconha eu até já fumei eu sei, não precisa me olhar com essa cara, eu explico: eu tinha que saber como era e o Michael me ofereceu e eu sou simpático, o Michael é meu amigo há muito tempo de jogar bola na rua, e ele enrolou e a gente fumou, eu sou simpático não podia fazer desfeita com o Michael. Acontece que no bairro dizem que o Toninho começou assim e olha lá como ele tá, todo fodido na merda, e o cara lá das gírias e da maconha pode pagar clínica de reabilitação e virar crente, eu só posso virar Toninho e não quero virar Toninho não.

        Simpatia, é isso que tenho. Esse povo não tem. No serviço lá, aquele dia, aquele engomadinho que chegou lá, lembra? Roupa social, camisa de gola eu até tenho, mas nem uso pra trabalhar buscar trabalho porque não preciso, tenho simpatia, sei que tenho. Chegou dando conta de economia, que mexeu com contabilidade, eu nem direito o que é isso, mas tem um monte de gente que tem isso de contabilidade. Acontece que o pai do menino tem empresa, tem sobrenome, aí ficou mais fácil pro menino porque o pai dele tem a empresa com o sobrenome dele, onde o menino trabalhou de contabilidade. E eu nem sei onde meu pai trabalha, onde mora, meu pai não sabe onde eu trabalho, onde eu moro, e que onde eu moro o dono da casa já disse que vai aumentar o aluguel e eu vi que vou ter que mudar porque com o que tenho de salário do trabalho não vai dar. Se eu ganhasse o salário do menino da gola de sobrenome do polo pai social engomadinho contabilidade roupa, até teria dinheiro, porque o patrão acabou contratando ele e agora ele trabalha lá, tem dinheiro do salário além do dinheiro do pai. Mas ele não vai durar muito tempo lá não que eu sei, aí eu teria os dinheiros dele, mas não teria  muito tempo de serviço, porque ele nem conversa com o porteiro lá do trabalho, nem com o faxineiro e com a moça da cozinha. Aí eu sempre converso porque sou simpático e sei de conversar as coisas deles, e o patrão deve gostar muito muito de mim por isso e não vai me mandar embora tão cedo, mas bem que podia aumentar meu salário, ein patrão, porque o aluguel vai aumentar e meu pai tem sobrenome em português mesmo, só que não posso provar porque não tenho na certidão, mas ele mesmo fala que é meu pai e me deu uma bicicleta quando fiz dez anos.  Dá o aumento aí, dá, patrão. Considera a simpatia.

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