sábado, 14 de maio de 2011

Sábado Quatorze

Sorte de quem se sente pássaro usando os olhos para ouvir o silêncio.

Sorte de quem usa a infância para se lembrar de como se guarda a alma em cima duma árvore.

Sorte de quem se lembra de incluir em suas orações um “livrai-nos da sensatez, amém”. E nisso, inclua a sorte de quem não sabe se amém se escreve com m ou n, então promete aprender latim no próximo ano. E junto com o latim, vai aprender a fazer pipoca doce, vai ligar mais para sua mãe e quem sabe até largar o cigarro.

Sorte de quem teme que o pão volte a custar trinta centavos. De quem teme que a prefeitura volte a cortar a árvore em frente a sua casa. Sorte de quem teme, mas nunca teme a Deus. De quem conversa com ele, de quem já não procura entender e de quem espertamente se finge de ateu quando um crente bate a sua porta às oito da manhã.

Sorte de quem é chamado de louco, de desperdiçado. De quem desplanejou o futuro e pretende continuar pobre. De quem tem vontade de fugir pro mato, mandando tudo à merda, mas lembra-se que ainda há muitos livros para serem lidos e muitos amigos para serem reencontrados e reinventados.

Sorte de quem sabe cozinhar, mas não aos domingos, por acordar tarde demais. Então enfia cinco mangos no bolso e sai pra rua, se esquecendo de como anda cara essa coisa de viver. E na rua, sente falta de alguém. Pensa na amada umas duas vezes, mas se esquece completamente quando vê uma garota de dezenove anos com seu balançar de bunda esculpida por toda a volúpia desse mundo.

Sorte de quem faz barquinho com todo papel de propaganda de supermercado. Sorte de quem ainda se lembra das canções cantadas pela avó. E acha uma besteira só todas essas músicas novas e histórias mal-inventadas que passam na tevê.

Sorte de quem, no sábado, descobre uma peça gratuita e decide chegar cedo ao teatro, por achar que vai lotar. Descobre então que os teatros não se lotam em sua cidade. Sorte dessa cidade ainda conter a sua infância.

Sorte de quem se vê criança, se vê árvore, se vê pássaro, se vê sem ser visto.

3 comentários:

  1. Tá muito muito bom esse texto.

    ResponderExcluir
  2. Sorte de quem prova, sabor, evidências, amor, só vivências...

    Sorte de quem lê a sorte do outro, em texto ou em presença.

    ResponderExcluir