domingo, 4 de julho de 2010

Além do chão

Ele encontrava-se mais uma vez em um esgoto de uma cidade muito antiga e pequena. Embora ainda fosse uma cidade desconhecida aos seus olhos e principalmente estranha ao seu olfato, ele sabia muito bem como agir caso estivesse lá. Cada rato ou cada excremento que se passasse aos seus pés já não lhe provocavam tanta estranheza. Cada ruído lhe era familiar, mesmo assim, até o som de sua respiração o incomodava. Forçava sua memória, mas não conseguia se lembrar como havia chegado ali. Apenas se lembrava da última vez que havia acordado em um esgoto, mas não como havia conseguido sair de lá. Entretanto, o que mais o feria era saber que havia quebrado sua própria promessa: a de não estar em um lugar como esse novamente.


Ele também não se lembrava de várias coisas, como a última vez que se meteu em uma briga com alguém mais forte do que ele. Nem da última vez que deu um beijo em sua esposa, lhe desejando bom dia. E ainda se confundia ao tentar decorar o número do telefone de seu único amigo. Mas a esta hora, a este lugar, isso continuaria não tendo nenhuma importância.

Estar ali no esgoto, era como estar em qualquer lugar em sua vida. Como se estivesse no trabalho ou em casa assistindo o seu futebol. Nada parecia ter um motivo especial. Ele apenas estava lá por estar. É claro, ele não fazia tanta questão de estar trabalhando sentado no escritório ouvindo ofensas do seu chefe, ou de estar sentado em sua poltrona, vendo seu futebol e ofendendo sua mulher. A única questão que fazia era de não estar em um esgoto novamente. Mas ele estava.

E pelo vazio subterrâneo ele continuou caminhando, meio sem rumo, meio sem medo. Sua roupa estava irreconhecível de tanta sujeira, mas não se importava, já que não se lembrava qual roupa havia vestido de manhã. Com um esforço mínimo, talvez se lembrasse que ainda vestia sua roupa de trabalho. Mas o trabalho o lembraria de seu chefe, e como ele desejaria que o bastardo estivesse ali em seu lugar.

Enquanto isso, em sua casa, sua mulher olhava o relógio a cada cinco minutos. Já se passavam das nove da noite e a esperança da mulher aos poucos ia se acabando. 'Ele voltou com a amante', ela pensava. Ele não iria dormir em casa hoje e no fundo isso lhe causava um certo alívio. Chegou a tirar o telefone do gancho para ligar para seu ex-namorado, um homem seis anos mais novo que sempre lhe fazia 'companhia' nessas horas tão difíceis. Mas seu marido não havia pagado a conta telefônica por falta de dinheiro, ou seja, mas uma prova de que havia voltado a gastar com amantes. Por fim, ela resolve apenas passar pano no chão e trocar alguns móveis de lugar antes de dormir.


Ele não usava drogas há mais de dez anos e pouco bebia além de sua cervejinha de fim de semana. Mas estava lá, no esgoto de sua cidade. Não era alucinação. E como diria, dormia muito pouco para ter tempo de sonhar. Era real, ele estava no esgoto mais uma vez.

"Maaarcos, Maaarcos!"
Ouviu alguém o chamando, como se não estivesse em um esgoto.
"Maaarcos, Maaarcos!"
Ouviu alguém o chamando, como se os ratos falassem.

Ele precisava de ajuda, de qualquer ajuda. Fosse ela de seu chefe, de sua esposa ou dos ratos que passavam assustados pelo chão. Sentia mesmo uma certa dificuldade em ajudar outras pessoas ou em oferecer qualquer coisa que lembrasse amor. Mas não era orgulhoso, aceitava tudo que pudesse lhe oferecer vantagem.

"Maaarcos, Maaarcos!"

Já era o suficiente. Havia mesmo alguém ali que estava tentando o ajudar.
Embora estivesse em um corredor enorme que beirava o infinito, ele simplesmente decidiu correr desesperadamente contra a ninhada de ratos que quase o atropelava.

"Estou aqui, estou aqui!"
Gritava freneticamente, embora não soubesse ao certo se realmente haveria alguém oferencendo ajuda.

Aos poucos os gritos iam perdendo a força. Tanto os que clamavam por Marcos, quanto os que clamavam por socorro se juntavam aos ruídos dos ratos, até finalmente serem silenciados por uma angústia seca que corta a garganta e nos faz conformar com a realidade.

"Não tenha medo de cair, do chão você não passa!"
Marcos que sempre seguiu essas sabias palavras tantas vezes repetidas por seu avô, começara a repensar sobre o que havia se tornado e sobre o futuro que te esperava.

Havia passado do chão, estava no esgoto. Estava no inferno, sem se lembrar de qual purgatório teria passado pra chegar até ali.

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